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1. “Entrando em um grande túnel escuro”

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Entre o fogo cruzado e o campo minado:

Valle Menezes, P.

2015

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Valle Menezes, P. (2015). Entre o fogo cruzado e o campo minado: uma etnografia do processo de pacificacao de favelas cariocas. Vrije Universiteit.

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    INTRODUÇÃO

1. “Entrando em um grande túnel escuro”

Bom, eu vou ser breve, mas vou contar um pouquinho da história. Em novembro de 2008 chegou um aparato policial muito grande aqui no Santa Marta. Nós achávamos que era uma incursão (...). Aí eu fui procurar saber o que estava acontecendo. Como presidente da associação, o pessoal vinha me procurar. O secretário falou assim: “não, Zé Mário, isso aqui não é uma incursão, não. Isso aqui foi a chegada da polícia para nunca mais sair daqui do Santa Marta.” Aí eu cheguei para o governador e falei: “governador, isso não é politicagem para a comunidade não, né?” Porque nós já tínhamos sofrido em 1999 com o Bope uma ocupação também. Duraram nove meses na comunidade e quando o Bope saiu do morro não falou nada para ninguém. Saiu saindo, a comunidade ficou à mercê de invasões, pessoas morreram, pessoas perderam casas. (Trecho de um discurso de Zé Mário Hilário, presidente da Associação de Moradores do Santa Marta1) Quando a UPP chegou, eu me lembro! Foi a maior correria! Nós não sabíamos, não estávamos programados. Estávamos dormindo em casa com fuzil. Perdemos amigos para caramba. Morreram uns 9 nesse dia (…). Nós estávamos acostumados com a favela tranquila. Sempre amanhecia arregadona. Então, nós chegávamos, deitava na cama, deixava o fuzil de um lado, pistola do outro, e ia dormir. Acordava, tomava banho, escovava o dente, botava o fuzil do lado, ligava a moto e saía para começar a colocar a boca para funcionar. Quando eu fui fazer isso, vi o Caveirão e falei: “ih, caralho”! Já desliguei a moto, fui pelo cantinho da parede, entrei em casa de novo e já acordei meus parceiros e falei: “qual foi, mano? Os canas estão aqui na favela”. (...) Papo vai, papo vem, liga para um, liga para outro (…) e para tirar os negócios [armas e drogas] de dentro da casa?

Maior adrenalina doida, acordamos todo mundo. Moravam quatro moleques comigo: “vambora, vambora. Liga para fulana de tal, cicrana, mulher, prima, o que der para elas irem levando aos poucos”. Então, foi assim: UPP entrou, vários amigos dormindo, os canas invadiram, viram o fuzil do lado e nem esperou falar nada (…). No dia que a UPP chegou morreram uns 9 (…). A gente achava que era uma operação policial normal. (Trecho de entrevista com um traficante da Cidade de Deus) A gente não sabia o que estava acontecendo. O dia que teve a invasão, eu saí para trabalhar e vi vários policiais entrando. Eu pensei que fosse uma incursão, uma blitz, só. Mas depois eu soube que foi na Cidade de Deus toda. Via muitos carros do Bope, mas ninguém tinha ideia. [...]. Tanto que os caras [envolvidos com a venda de drogas na favela] acreditavam que eles [os policiais] não iam ficar. (...) Os caras só levaram fé naquilo ali quase um mês depois. Os caras viram que não tinha mais jeito, que ela ia ficar definitivamente. Ali eles acordaram... Mas no início, nem os policiais sabiam, nem os caras da milícia sabiam. (Trecho de entrevista com morador da Cidade de Deus)

                                                                                                               

1 Trecho do discurso feito por Zé Mário durante a inauguração do Projeto Rio Top Tour, realizada no dia 30 de agosto de 2010 na Quadra da Escola de Samba Mocidade Unida do Santa Marta.

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Em novembro de 2008, quando a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro ocupou a Cidade de Deus e o Morro Santa Marta, lideranças comunitárias, moradores e jovens que atuam (ou atuavam) no comércio varejista de drogas ilegais pensaram estar diante de apenas mais uma “operação policial normal”. A ação da polícia nesses territórios, a princípio, parecia seguir o mesmo roteiro das incursões que há algumas décadas vinham reiteradamente ocorrendo nas favelas cariocas.

Como de costume, policiais fortemente armados entraram nas duas favelas contando com o fator surpresa e encontraram a resistência de traficantes. Trocaram tiros – seguidos de mortes no caso da Cidade de Deus –, efetuaram prisões em flagrante e apreenderam drogas e armas. Apenas o último elemento do roteiro “padrão”

das operações policiais de praxe nas favelas não fez parte da ação realizada em novembro de 2008: dessa vez a polícia não se retirou dos territórios alguns dias após o início da incursão.

Em um primeiro momento, ninguém entendeu muito bem o sentido da polícia permanecer na favela. Os repertórios habituais de que dispunham os moradores dessas localidades não auxiliavam nesse trabalho interpretativo. Não havia informações oficiais disponíveis sobre o que estava ocorrendo ou iria ocorrer. Inicialmente, não houve qualquer anúncio de que seriam inauguradas no Santa Marta e na Cidade de Deus as duas primeiras Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) da cidade do Rio de Janeiro – até porque, nesse momento, o nome UPP ainda nem sequer existia.

Logo, ninguém podia antecipar que naquele momento começava a ser elaborado e testado um projeto que ganharia centralidade no debate sobre segurança pública no Brasil. Era impossível – até mesmo para os policiais ou funcionários mais otimistas do governo – prever que se tratava do início, nessas duas favelas, de uma experiência que, posteriormente, seria classificada como se não a mais, certamente uma das mais significativas em termos de segurança pública produzidas no Rio de Janeiro nas últimas décadas. Como sintetizou o presidente da Associação de Moradores do Santa Marta, no momento que o morro foi ocupado, a sensação de grande parte da população da favela era a de estar “entrando num grande túnel escuro, esperando chegar rapidamente do outro lado para ver muita luz”

2

.

                                                                                                               

2 Trecho de depoimento “Aprendendo com os erros”, dado por Zé Mário e publicado no jornal Extra, em 28 de dezembro de 2008.

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É possível dizer, portanto, que, em novembro de 2008, os moradores do Santa Marta e da Cidade de Deus viveram plenamente o que o filósofo pragmatista John Dewey definiu certa vez como uma situação indeterminada, ou seja, uma situação

“incômoda, problemática, ambígua, confusa, cheia de tendências conflitivas, obscura, etc.”, uma situação na qual aqueles que estavam nela envolvidos a vivenciam como

“incerta porque a situação era inerentemente incerta” (1938, p.171).

Moradores e traficantes que atuavam nesses territórios não sabiam ao certo por que a polícia tinha ocupado a favela em que residiam e até quando o contingente policial ali permaneceria, muito menos como permaneceriam. Diante dessa situação confusa e permeada de ambiguidades, diversos atores começaram a indagar a respeito do que estava ocorrendo, mobilizando assim suas capacidades e competências reflexivas com a finalidade de tornar inteligível aquela indeterminação.

Em um dos relatos citados, que servem de epígrafe à introdução, o presidente da Associação de Moradores do Santa Marta descreve com riqueza de detalhes essa experiência do trato com a nova indeterminação e narra como muitas pessoas o procuraram para perguntar o que estava se passando na favela. Incapaz de dar uma resposta, ele conta como procurou outros presidentes de associações de outras favelas da Zona Sul para conversar e se reunir com o poder público, exigindo uma explicação sobre o que estava acontecendo.

Os jovens envolvidos com o comércio varejista de drogas nessas duas favelas também começaram a se perguntar e a tentar entender o que estava ocorrendo.

Acionaram os contatos que tinham e quando notaram que não estavam diante de uma

“operação policial normal”, não sabiam ao certo como agir. Por isso, tiveram que

improvisar. Ter informação, qualquer informação que fosse, naquele momento, era

essencial para que pudessem traçar estratégias minimamente seguras de ação. O que

fazer diante daquilo que não sabiam direito o que era? Como agir diante daquilo que

não se sabe bem ao certo o que é? Mesmo não sabendo nada a respeito do modo como

a polícia iria atuar na favela durante a ocupação, bastou a informação de que a partir

de agora a polícia ficaria na favela para que os traficantes improvisassem uma

estratégia de ação. Ainda que de modo precário e permeado de riscos, alguns

resolveram se esconder, outros (sobretudo aqueles de alta hierarquia) decidiram

escapar e fugir temporariamente para outras favelas não ocupadas pela polícia e,

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portanto, mais seguras para eles

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. Só alguns poucos traficantes de áreas específicas, como o Karatê na Cidade de Deus, resolveram enfrentar diretamente a polícia em meio à situação indeterminada.

Nesta tese analiso a chegada da polícia no Santa Marta e na Cidade de Deus como uma crise ou momento crítico, ou seja, um evento capaz de produzir uma ruptura com as formas habituais de ação, quebrando com as expectativas que os atores possuem acerca de sua maneira rotineira de ser, de se comportar e de agir. Como explica Shibutani (1966):

a crisis is any situation in which the previously established social machinery breaks down, a point at which some kind of readjustment is required. Crises are often provoked by environmental changes. (...) A crisis is a crisis precisely because men cannot act effectively together. When previously accepted norms prove inadequated as guides of conducts, a situation becomes problematic, and some kind of emergency action is required (1966, p.172).

Em poucas palavras, analiso na presente tese a ocupação policial que promoveu o surgimento das UPP como uma desrotinização momentânea da vida cotidiana da favela. Busco compreender como tal processo modificou e transformou os modos de existência ou formas de vida locais, fazendo com que boa parte do que era tomado como óbvio (taken for granted) pelos moradores e pelos traficantes deixasse de sê-lo de maneira repentina. A UPP, nesse sentido, mais do que um

“experimento de desestabilização” (breaching experiment, Garfinkel, 1963), foi uma experiência de desestabilização. Isto porque todos os atores afetados com sua chegada foram obrigados a forjar novos repertórios sensíveis e cognitivos para lidar com a nova situação. No entanto, antes de analisar essas mudanças geradas pela chegada das primeiras UPPs, descreverei brevemente como se configuravam as rotinas nas favelas cariocas nas últimas décadas, pois se o processo de “pacificação” trouxe novidades, convém desenvolver o que havia antes de sua chegada.

2. As rotinas, os tiroteios e a “leitura do clima” das favelas

A percepção e a vivência da violência urbana

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na vida cotidiana talvez seja um dos mais importantes fenômenos sociais deste início de século (BURGOS, 2008). Na                                                                                                                

3 Beltrame afirma que, no caso do Santa Marta, a polícia recebeu informações de que traficantes “se desarmaram, vestiram uma roupa melhor, lavaram bem as mãos – a polícia tem um spray que detecta pólvora – e desceram caminhando tranquilamente” (2014, p.108).

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América Latina, tal fenômeno chama especial atenção, pois a região concentra os mais altos níveis de violência urbana do mundo (KOENDERS; KOONINGS, 2012, p.

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5

. No Brasil, não são poucos os autores (ADORNO, 2002; ZALUAR; ALVITO, 2004; MISSE, 2006; MACHADO DA SILVA, 2008) que vêm estudando este fenômeno e apontando que a violência tem sido percebida, com crescente intensidade nos grandes centros urbanos. No Rio de Janeiro, especialmente, inúmeras pesquisas indicam que a quantidade de crimes violentos praticados cresceu significativamente a partir dos anos 1980.

Misse (2011) aponta que a taxa de roubos com violência registrada pela polícia no Rio de Janeiro passou de 263 por 100 mil habitantes em 1980 para 830 por 100 mil habitantes em 2009. As taxas de homicídio também aumentaram significativamente passando de dez por 100 mil na década de 1950 para 25 por 100 mil na década de 1970 e alcançaram 50 por 100 mil habitantes nos anos 1980. Entre 1980 e 2007, aproximadamente 200 mil pessoas foram assassinadas só no estado do Rio. E, como aponta o autor, há “um consenso entre os especialistas de que parte significativa desse aumento relaciona-se ao tráfico de drogas a varejo em favelas e outras áreas urbanas de baixa renda” (MISSE, 2011, p.14).

A expansão da violência urbana no Rio de Janeiro parece estar umbilicalmente ligada à economia internacional da droga, em particular da cocaína, que se juntou a já                                                                                                                                                                                                                                                                                                                              

4 Neste trabalho sigo a perspectiva proposta por Machado da Silva (2008, p. 35) de pensar a violência urbana como uma representação coletiva, ou mais especificamente, uma representação de práticas – ameaças de saque à propriedade privada e à integridade física – e de modelos de conduta

subjetivamente justificados. Assim como Machado da Silva, partirei da ideia de que a violência urbana é uma construção simbólica que “constitui o que descreve”. Isto é, “uma categoria do entendimento do senso comum que consolida e confere sentido à experiência vivida nas cidades”. Tal categoria orienta instrumental e moralmente os cursos de ação que os moradores das cidades – como indivíduos isolados ou em ações coletivas – consideram mais conveniente nas diversas situações em que atuam.

5 A violência urbana na América Latina tem provocado um debate teórico intenso. Pereira e Davis (2000), Koonings (2001) e Briceno-Leon e Zubillaga (2002) vêm caracterizando as atuais

manifestações de violência em diversas cidades latino-americanas como uma “nova” violência, que já não é mais causada por regimes autoritários e guerras civis. Segundo os atores, o que caracterizaria essa violência “nova” é que ela tem lugar em sociedades democráticas, onde há estados consolidados e que estão politicamente “em paz” e já não envolveria mais a disputa de poder politico ou de posições ideológicas, centradas no Estado. Os autores acrescentam que a violência contemporânea latino- americana é perpetrada por uma escala muito mais ampla de atores violentos que possuem interesses diversos (KOONINGS; KRUIJT 2004, p. 8). Diferentes enfoques analíticos vêm enquadrando essa violência como um problema de governança, um problema de unrule of law ou ainda um problema ligado ao surgimento de poderes paralelos formado por atores armados que passam a disputar território e poder. Alguns trabalhos como o de Arias (2006) vêm criticando, contudo, essa noção de poderes paralelos argumentando que os atores armados que controlam territórios urbanos atualmente não podem ser entendidos de modo isolado, uma vez que eles mantêm múltiplas ligações com o Estado, com atores estatais e a política “legal”.

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existente cadeia produtiva da maconha. A histórica segregação espacial das favelas favoreceu que essa ponta do tráfico internacional, relacionada ao comércio de drogas a varejo, tivesse um de seus principais canais concentrado nesses “territórios da pobreza” (MACHADO DA SILVA, 2010). Assim, as favelas cariocas tornaram-se uma espécie de base de operações do crime violento relacionado ao comércio de drogas ilícitas.

Desde o seu surgimento, há mais de um século (VALLADARES, 2005;

ZALUAR; ALVITO, 2004), as favelas sempre foram vistas como uma espécie de quisto que ameaçava a organização social da cidade (MACHADO DA SILVA, 2002).

No entanto, os atributos que compõem o conteúdo do que é definido como “o problema favela” modificaram-se significativamente a partir dos anos 1980. A

“violência urbana” alterou o lugar das favelas no imaginário da cidade (MACHADO DA SILVA, 2008). Com a expansão do tráfico de drogas, o aumento dos confrontos armados entre diferentes facções criminosas e os conflitos entre esses grupos criminosos e a polícia, houve uma superposição do “problema da segurança” com o

“problema das favelas”.

Como lembra Misse, as principais organizações criminosas do tráfico a varejo no Rio de Janeiro – que surgiram dentro do sistema penitenciário durante a ditadura militar – estabeleceram-se nos morros cariocas e passaram a disputar esses territórios.

Essa disputa levou a uma intensa “corrida armamentista” entre comandos:

A expectativa do Comando Vermelho era a de oligopolizar o mercado a varejo das drogas em todo o estado do Rio de Janeiro, mas ainda em meados dos anos 1980 surgiu outra organização, intitulada “Terceiro Comando” (TC), que passou a disputar violentamente os territórios com o CV. Iniciou-se, assim, uma corrida armamentista entre os dois comandos pela posse das armas mais eficientes e letais, capazes de garantir seja a manutenção do controle dos pontos de venda, seja sua expansão para outras favelas. Com isso, estruturou-se, em paralelo, o tráfico de armas de guerra (fuzis AK-47, AR-15, metralhadoras de uso reservado das Forças Armadas, granadas, armas antiaéreas, bazucas etc.). Havia também os traficantes que controlavam áreas que se consideravam “independentes”

dos dois comandos. Com o tempo, dissidências surgiram e criaram-se novas facções a partir de meados dos anos 1990 (Comando Vermelho Jovem (CVJ), Amigos dos Amigos (ADA) e Terceiro Comando Puro (TCP), elevando a disputa com o Comando Vermelho (CV) a níveis de violência inéditos na cidade). (2011, p. 19).

Misse lembra ainda que a reprodução dessas organizações criminosas foi

particularmente dependente de acordos e trocas políticas com agentes públicos, dos

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quais policiais – que detêm o uso legal das armas e de informações estratégicas – constituiriam um dos principais tipos. Como aponta o autor:

diferentemente do jogo do bicho, que pratica o “arreglo” (acordo negociado) ou mesmo a cooptação de agentes públicos para sua folha de pagamento, policiais do Rio passaram a praticar o “arrego” (extorsão) sobre os traficantes de drogas, impondo trocas políticas assimétricas e praticamente compulsórias. (...) Sem essas mercadorias políticas, torna-se difícil compreender as relações entre violência, organizações criminosas e lucros nos mercados ilegais brasileiros” (2011, p. 23).

Como as organizações criminosas se estabeleceram nas favelas cariocas e ali se expandiram, esses territórios passaram a ser vistos “como o valhacouto de criminosos que interrompem, real ou potencialmente, as rotinas que constituem a vida ordinária na cidade” (MACHADO DA SILVA, 2010, p. 297). E as favelas deixaram, consequentemente, de ser tematizadas na “linguagem dos direitos” e passaram a ser processadas na “linguagem da violência urbana”. Ocorreu, assim, como sugere Machado da Silva,

a simplificação e o reducionismo de uma linguagem que restringe o tratamento dos problemas (no caso, a manutenção da ordem pública) a uma guerra contra atividades que perturbam o prosseguimento rotineiro da vida social. E que atribui a culpa a um segmento – os moradores dos territórios da pobreza e, mais especificamente, os favelados –, o qual, a partir de sua criminalização, torna-se o tipo ideal do Outro que precisa ser afastado a qualquer preço. Em decorrência, convergem para os aparelhos policiais demandas de recomposição de uma ordem social tida como ameaçada.

Cresce o clamor por uma ação “dura” – isto é, ilegal –, de modo que a única possibilidade de evitar a contaminação moral de todo o sistema, preservando os aspectos institucionalizados do conflito social, é deixar a

“dureza” da repressão ao arbítrio da polícia. (2010, p. 293).

Dessa forma, a ação policial “dura” passou a dirigir-se não tanto a grupos sociais específicos e mais ao controle e segregação territorial de áreas urbanas tidas como perigosas. Assim, como afirma Machado da Silva, fechou-se “o círculo de ferro que redesenha o espaço da cidade, na formulação dominante, a partir da relação entre violência urbana e ‘sociabilidade violenta’”

6

. E, em seu novo desenho, o Rio passou a                                                                                                                

6 Machado da Silva define “sociabilidade violenta” como uma forma de vida singular na qual “a força física, com ou sem instrumentos e tecnologias que a potencializam, deixa de ser um meio de ação regulado por fins que se deseja atingir, para se transformar em um princípio de coordenação (um

‘regime de ação’) das práticas. Em outras palavras, no limite, a violência se libera da regulação simbólica, isto é, de sua subordinação às restrições e condicionamentos representados pelos fins materiais ou ideais a que, sob outras circunstâncias, serviria como meio para sua obtenção. Ela se torna um fim em si mesma, inseparável de sua função instrumental como recurso para a ação. Em suma, como, aliás, sugere o próprio sentido do termo “princípio”, ela é sua própria explicação e se autorregula. (...) Ao menos no Rio de Janeiro, os ‘portadores’ da ‘sociabilidade violenta’ são,

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ser representado como uma “cidade partida” (VENTURA, 1994) na qual, de um lado, estão os bandos ligados ao varejo fixo de drogas, situados nas áreas de favela. Do lado oposto estão os cidadãos

7

e as organizações policiais impondo (por delegação

8

dos

“cidadãos de bem”) a redefinição das favelas como “complexos” territoriais a serem militarmente combatidos e confinados (MACHADO DA SILVA, 2010, p. 298).

Configurou-se, assim, especialmente, a partir dos anos 1990, a representação do conflito social no Rio de Janeiro como uma guerra (LEITE, 2012), cujo mecanismo central passou a ser as chamadas operações policiais realizadas em favelas

“dominadas” por traficantes de drogas. Diante do caráter sedentário das empresas locais do varejo de drogas, as políticas estaduais de segurança pública, como apontam Misse, Grillo, Teixeira e Neri (2013), tenderam a centralizar sua estratégia no enfrentamento pontual ao tráfico, visando efetuar, com regularidade variável, prisões e apreensões de armas, dinheiro e material entorpecente. Mesmo quando conduzidas investigações baseadas em informantes e escutas telefônicas, são necessárias as operações policiais de incursão em favelas para a execução dos mandados de busca e apreensão. E quando essas operações têm início e a polícia entra no território da favela, quase inevitavelmente, ocorrem confrontos entre policiais e traficantes.

Os confrontos entre policiais e traficantes geram frequentemente como

“efeitos colaterais” mortes nem sempre acidentais. Isso porque, nesse tipo de ação policial, o extermínio acabou tornando-se uma das estratégias para a vitória do inimigo, já que “com facilidade” é “admitido que situações excepcionais – de guerra –

“exigiam “medidas também excepcionais e estranhas à normalidade institucional e democrática” (LEITE, 2012, p.379). É possível dizer, portanto, que, “a polícia passou a adotar cada vez mais uma política de extermínio” (MISSE, 2011), na qual a morte                                                                                                                                                                                                                                                                                                                              

tipicamente (mas não exclusivamente), os bandos de traficantes responsáveis pelo funcionamento das

‘bocas’ tendencialmente localizadas nos ‘territórios da pobreza’” (2011, p. 286)

7 Como aponta Leite (2012, p. 379), geralmente, são considerados cidadãos, nesse contexto, aqueles que são “trabalhadores, eleitores e contribuintes e, nesta qualidade, pessoas de bem, honradas, para quem a segurança é condição primordial para viver, produzir, consumir”.

8 Leite indica que a operacionalização da promoção da “guerra” contra as favelas “envolve uma modelação do mandato policial nesses territórios, que libera os agentes do Estado para irem além da

‘força comedida’ que é sua atribuição constitucional, ou seja, para a utilização da ‘força desmedida’

(Brodeur, 2004). Este dispositivo atribui ao agente policial “na ponta” a prerrogativa de decidir quando, como e contra quem agir de forma extralegal, em um movimento discricionário que não se submete à lei, ou melhor, que embaralha o legal e o ilegal, o legítimo e o ilegítimo (Telles, 2010), e que é dependente das avaliações e julgamentos individuais do agente, fortemente influenciado pelo

contexto da ação e, neste sentido, pelos preconceitos associados à estigmatização das favelas e de seus moradores” (2012, p. 380).

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de traficantes por policiais durante operações realizadas em favelas é não só tolerada, mas também desejada e premiada

9

.

A partir de toda essa configuração, a rotina das favelas cariocas, nas últimas décadas, passou a constituir-se sobretudo, pela virtualidade de conflitos violentos que pode irromper a qualquer momento nesses territórios. As manifestações violentas que ameaçam a rotina da parcela da população que vive em favelas resultam da contiguidade territorial inescapável com os bandos armados ligados ao comércio de drogas ilegais e com a atuação pouco previsível e quase sempre violenta da polícia e das milícias

10

. A proximidade entre esses atores provoca entre as populações que não moram em favelas uma grande desconfiança em relação aos “favelados”.

Viver em tais circunstâncias gera o que Machado da Silva e Leite (2008) chamam de “vida sob cerco”, isto é, uma experiência de confinamento socioterritorial e político que provoca nos moradores de favelas uma intensa preocupação com manifestações violentas que impediam o prosseguimento de suas rotinas diárias e dificultavam a manifestação pública de suas demandas. Tal experiência é produzida por uma série de “eventos fora de controle, em graus e intensidade muito maiores do que aquela que atinge o conjunto da população da cidade, igualmente assoberbada por episódios violentos que se repetiam sem cessar” (MACHADO DA SILVA; LEITE;

2008, p. 35). E um dos eventos pouco previsíveis que mais desestabiliza a rotina da população carioca, de um modo geral, e a dos moradores de favelas, em especial, são os tiroteios.

                                                                                                               

9 Entre 1995 e 2000, os policiais militares e civis do Estado do Rio de Janeiro que praticassem atos considerados de bravura pelo comando da corporação − que resultavam, recorrentemente, na morte de supostos criminosos – foram premiados com a chamada “gratificação faroeste”. Criado em novembro de 1995 pelo general Nilton Cerqueira, secretário de segurança no governo do Rio de Janeiro de Marcello Alencar, o encargo especial estimulou confrontos e mortes e só foi suspenso no ano 2000.

10 Na última década, as milícias ganharam uma grande notoriedade no debate sobre segurança pública na cidade do Rio de Janeiro. Embora não seja possível precisar exatamente quando e como o fenômeno teve origem, Cano e Duarte (2012) sugerem que o termo milícia foi cunhado, por volta de 2006, para descrever grupos de agentes armados do Estado (policiais, bombeiros e agentes penitenciários) que controlavam favelas e loteamentos e tinham o controle monopolístico sobre diversas atividades econômicas exercidas nestes territórios. Algumas dessas atividades são a venda de gás, o transporte alternativo e o serviço clandestino de TV a cabo e de Internet. A partir do domínio territorial armado de certos territórios da cidade, esses grupos, além de vender os serviços listados acima, também vendiam

“proteção” em troca de taxas que comerciantes e residentes eram obrigados a pagar mensalmente.

Quem ousava não pagar essas taxas era duramente coagido (podendo apanhar, ser expulso da favela ou até morrer). Essa atuação da milícia, até pouco tempo atrás, era legitimada pelo discurso de que os milicianos estariam libertando os moradores dos traficantes de drogas e estariam instaurando uma ordem protetora nos territórios antes dominados pelo tráfico. E mesmo nos territórios onde antes não havia uma forte presença do tráfico no passado, a atuação da milícia era apresentada como uma forma legítima de prevenção que impedia que traficantes viessem a dominar o território futuramente.

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Como sugere Cavalcanti, a possibilidade constante de irrupção de tiroteios constituiu-se como um dos princípios estruturantes da fenomenologia da vida cotidiana nas favelas. Isso porque, a expectativa do fogo cruzado, gera pelo menos três efeitos: a) gera uma constante preocupação entre os moradores de favelas; b) afeta em larga medida a mobilidade dessa parcela da população

11

; e c) impacta também o próprio espaço construído da favela, por meio de esforços constantes de assegurar lugares seguros (CAVALCANTI, 2008, p. 37). É possível dizer, portanto, que as potenciais trocas de tiros tiveram, nas últimas décadas, um papel central no modo como o medo e a incerteza relacionados à “violência urbana” foram vivenciados pelos moradores de favelas do Rio de Janeiro. Nas palavras de Cavalcanti:

a constante iminência de tiroteios produz uma temporalidade concretamente experimentada como uma antecipação, como uma quase espera pela próxima ocorrência, engendrando uma série de rotinas de evitar e avaliar riscos. O tiroteio, assim, constitui-se tanto como objeto de investigação em si quanto como uma lente através da qual é possível vislumbrar outras rotinas e mapas mentais produzidas pela duração – no tempo e no espaço – da dita crise de segurança pública, e sua incorporação a outras temporalidades e espacialidades da vida cotidiana. (2008, p. 37)

Cavalcanti ressalta que essa temporalidade antecipatória não é prerrogativa exclusiva dos cariocas – moradores de favelas ou não – visto que tende a ser característica da vida em lugares nos quais o cotidiano é atravessado por constantes confrontos ou guerras. Como lembram Koenders e Koonings, quem mora nesses lugares precisa quase inevitavelmente adotar estratégias (coping strategies) para lidar com possíveis interrupções das rotinas cotidianas:

As violence has become an integral part of everyday life for many, researchers increasingly focus on so-called coping strategies to deal with violence, fear and insecurity (Scheper-Hughes & Bourgois 2004; Goldstein 2003). Showing forms of “everyday resilience” (Scheper-Hughes 2008) people navigate precarious contexts in different ways, varying from avoidance and conciliation to resistance and confrontation (Moser &

McIlwaine 2004). Resilience refers to the capacity to “bounce back” in the face of disruptions of social life. Urban violence and insecurity disrupt not only the conditions of immediate physical and psychological wellbeing of residents, but also their everyday routines, their ability to make use of urban space, their ability to sustain social relations, and their ability to engage in livelihood strategies (Koonings & Kruijt 2007). However serious these disruptions may be, many urban communities under

                                                                                                               

11 A ocorrência de tiroteios afeta não só a população das favelas, mas também os moradores que habitam o entorno desses territórios. Quando ocorrem tiroteios na Rocinha, por exemplo, o túnel Zuzu Angel costuma ser fechado paralisando o trânsito entre a Gávea e São Conrado.

(12)

conditions of (chronic) violence have generated know-how that allows residents to pursue strategies seeking a certain level of normalcy and sociability (2012, p.3).

Para pensar, sobre a temporalidade antecipatória – composta por estratégias rotineiras de evitação e de avaliação de riscos –, vivenciada, especialmente, pelos moradores de morros cariocas, Cavalcanti apresenta uma interessante discussão sobre a leitura do “clima nas favelas”. Segundo a autora,

a “leitura” constante “do clima” ou “das coisas” constituía uma atividade hermenêutica incessante, baseada em códigos tácitos, porém compartilhados e altamente sensórios, que combinam elementos significantes visuais e sonoros, jogos de presenças e ausências, performances quase ritualizadas, os ritmos da vida cotidiana e, é claro, o fluxo constante de rumores, fofocas e informações em geral. Essa leitura constante do “clima” se dá através da comparação de uma certa imagem mental em parte abstrata, em parte “normativa” (no sentido de ser “ideal”

dentro do que se conhece como possível) de como as “coisas” são quando está tudo “tranquilo” – o que por si só leva em consideração uma série de variáveis, tais como a hora do dia e a memória do passado recente – e a confrontar com a paisagem da favela em um dado momento qualquer.

(2008, p.39)

A “leitura” constante “do clima” é uma atividade interpretativa que envolve a lembrança de momentos passados que emolduravam a leitura do momento presente na tentativa de prever episódios que ainda estavam por vir. Cavalcanti explica, por exemplo, que “levar um guarda-chuva, ler a previsão, equivaliam a dar um telefonema para assegurar-se da situação na favela, uma pausa mais detida para avaliar a

‘situação’” (2008, p. 40). Esta avaliação da situação dependia da existência de pontos de ancoragem que possibilitam a leitura do “clima da favela”:

Quem está à vista? Os moto-táxis fornecem as pistas mais confiáveis. Se estão presentes, tranqüilos e relaxados, rodando constantemente, é possível baixar a guarda de imediato. Ainda assim, o olhar inevitavelmente passa, sem necessariamente repousar, por outros elementos da paisagem – não só visuais, mas também sonoros e mesmo olfativos (afinal, dificilmente um churrasquinho ser grelhado em momentos de tensão). Há música tocando?

Os vendedores ambulantes, camelôs, e o comércio local estão abertos?

Seus ocupantes estão tranqüilos? E os presumíveis olheiros? E a boca, está lá? O semblante dos “meninos”? Há crianças na rua? O comércio está aberto? Já houve “tirinhos” hoje? Caso afirmativo, com alguma freqüência? Houve tiroteio ontem? (...) As respostas a tais perguntas variam de acordo com a hora do dia, o dia da semana e a memória do próprio “clima” recente – e normalmente só são registradas conscientemente se negativas. (CAVALCANTI, 2008, p.46)

A descrição de Cavalcanti exemplifica bem como essa atividade de avaliação

da situação presente e a antecipação de eventos futuros não envolve apenas um

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cálculo racional, mas também toda uma “ecologia do sensível” da favela, isto é, o que o antropólogo Tim Ingold define como “modo de sentir constituído pelas capacidades, sensibilidades e orientações desenvolvidas [pelos moradores, traficantes e policiais]

em uma longa experiência de vida em um ambiente particular” (2013, p. 37).

O ambiente da favela, descrito e analisado por Cavalcanti (2008), Machado da Silva e Leite (2008), contudo, sofreu significativas alterações desde o final de 2008. A

“ecologia do sensível” da favela foi drasticamente alterada com a chegada da polícia no Santa Marta e na Cidade de Deus, o anúncio de que a ocupação seria permanente e, em seguida, a inauguração das duas primeiras Unidades de Polícia Pacificadora do estado do Rio de Janeiro.

3. A UPP como objeto de investigação de diversos atores

A ocupação policial permanente do Santa Marta e da Cidade de Deus reconfigurou o ambiente rotineiro com o qual os atores que ali habitavam estavam habituados. Quando isso ocorreu, os primeiros territórios “pacificados” tornaram-se, momentaneamente, paisagens desconhecidas para os próprios moradores que ali residiam e para os traficantes que atuavam ali há anos. Essas novas paisagens instituíram-se como verdadeiros centros de indeterminação com os quais os moradores – assim como integrantes de grupos armados ligados ao comércio de drogas ilícitas que atuavam nessas localidades – não sabiam exatamente como lidar, já que não dispunham mais dos repertórios e dispositivos necessários para avaliar a situação e, para retomar a expressão de Cavalcanti, “medir o clima” da favela.

Os antigos repertórios e formas tácitas, habituais e espontâneas de avaliação

da atmosfera local que os atores dispunham não eram mais capazes de dar conta da

nova situação. As pequenas “pistas”, os pequenos marcos sensórios disponíveis na

favela como os fogos, a movimentação dos mototáxis, o churrasquinho grelhado, a

localização da boca de fumo, a posição dos “atividade” ou “contenção”, a

frequentação das biroscas já não serviam mais para auferir o clima. Daí porque houve

uma alteração de sensível e cognitiva, já que um novo repertório sensível (INGOLD,

2013, p. 34) e novos “mapas mentais” (GELL, 1985) precisaram ser forjados.

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Uma nova fenomenologia do tempo e do espaço foi introduzida no universo potencial próprio ao contexto prático de ação dos atores. E as “pistas”

12

antes rotinizadas não apenas para antever potenciais riscos relativos aos tiroteios, mas para orientar a ação no trato cotidiano com os traficantes e policiais, foram fortemente alteradas. Daí porque uma nova “educação da atenção” (GIBSON, 1979; INGOLD, 2000) foi requisitada, isto é, uma nova modalidade de afinação do sistema perceptivo dos residentes com o ambiente foi necessária para navegar na ecologia sensível da favela pós-“pacificação”.

Podemos aproximar o que Ingold (2013) chama de “pistas” e Cavalcanti (2008) chama “códigos tácitos, porém compartilhados e altamente sensórios”. Para a antropóloga o conjunto desses códigos e de sua leitura podem ser pensados como o

“aspecto de legibilidade do espaço da favela que emerge de modo coletivo pela própria naturalização do conflito”

13

. Nesse sentido, é possível pensar que quanto maior o número de “pistas” compartilhadas, maior será o aspecto de legibilidade do espaço da favela e maior será a facilidade para “navegar” no ambiente (VIGH, 2009).

Ou, pelo contrário, quanto menor o número de “pontos de ancoragem” disponíveis, menor será a possibilidade de ler o “clima da favela”.

Sugiro que com a chegada da UPP, os códigos perderam sua operacionalidade momentaneamente. Assim, para os atores tornou-se mais difícil a medição do “clima” ou, para ser mais precisa, “a legibilidade do espaço da favela”.

Como houve essa disrupção temporária e radical dos elementos que permitiam ler o

“clima da favela”, os atores tiveram que buscar novos elementos que os auxiliassem a lidar com a nova situação. Diante da zona de indeterminação que se impunha com a chegada da UPP, os residentes se perguntavam e buscavam elementos para entender o que estava acontecendo. Ou seja, era necessário que fosse realizado um “processo de investigação” no sentido do filósofo pragmatista John Dewey

14

, isto é, uma atividade                                                                                                                

12 Segundo Ingold uma “pista” é um ponto de localização que concentra os elementos díspares da experiência em uma orientação unificada que, por sua vez, abre o mundo a uma experiência de maior clareza e de maior profundidade. Nesse sentido, “as pistas são chaves que abrem as portas da percepção: quanto maior o número de chaves, um maior número de portas você pode abrir, e mais o mundo se abre a você” (2013,p. 32).

13 Vale lembrar aqui que embora exista uma “incessante procura de sinais, a constante reatualização dessa gramática tácita de segurança e ameaças mostra-se, no mais das vezes, inútil. O fato é que quando os tiroteios irrompem, inevitavelmente pegam a maior parte dos moradores de surpresa”.

(CAVALCANTI, 2008, p. 40)

14 A noção de investigação utilizada por John Dewey tem sua história vinculada às reflexões de Charle Sanders Peirce a respeito do estado de dúvida e de crença. No texto “How to make Our Ideas Clear”,

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que visa “a transformação controlada ou dirigida de uma situação indeterminada em uma situação que é de tal modo determinada em suas distinções e relações constitutivas que ela converte os elementos da situação original em um todo unificado”

15

(1939, p. 104-5).

Meu objetivo nessa tese é, portanto, apresentar e descrever como, na prática, os atores, diante das situações indeterminadas geradas pela chegada e manutenção da presença das UPPs, se esforçaram para produzir uma “transformação controlada” da

“situação indeterminada” em uma situação estável. Ou seja, a ideia é passar de uma filosofia das formas elementares da investigação humana, como fez Dewey em seu opus magnum sobre a Lógica, para uma sociologia das investigações dos atores.

Trata-se, pois, do processo por meio do qual as pessoas, ao depararem-se com uma situação cujos elementos constitutivos mostram-se indeterminados, indefinidos, confusos, não integrados e em conflitos uns com os outros, esforça-se para conferir- lhes inteligibilidade, bem como para tornar o seu curso de ação controlado e ajustado.

A investigação, portanto, é um processo cuja temporalidade ou cujos desdobramentos podem analiticamente ser definidos em etapas. Ogien e Queré assim definem as etapas do processo de investigação:

[primeiro,] uma situação indeterminada bloqueia a organização da conduta; a redução de sua indeterminação se faz na e pela investigação que a problematiza; a investigação determina progressivamente o problema através da exploração de suas soluções possíveis. A definição do problema é, portanto, o momento chave da investigação. O ponto de partida é a existência de uma situação problemática, instável ou incerta – ou ainda obscura, confusa, contraditória, conflituosa, enfim, uma situação cujos

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             

Peirce (1878, p.3-5) sustenta que os homens buscam permanentemente o estado de crença, sempre mobilizando esforços para sair do estado de dúvida. Essa última sendo vista por Peirce como um incômodo, uma “coceira” de que o homem tenta se livrar. Existe, portanto, uma ligação genética entre a noção de dúvida de Peirce e a noção de indeterminação de Dewey. A investigação aqui sendo, no caso do primeiro, aquilo que permite passar do estado de dúvida para o de crença, ao passo que para o segundo seria o que permite passar da situação indeterminada para a situação resolvida. Tal noção, iniciada na filosofia pragmatista, é posteriormente estendida para a sociologia pelos autores da Escola de Chicago e interacionistas como Shibutani, Faris, Strauss e Becker. Mais recentemente, a sociologia pragmática francesa em autores como Bruno Latour, Luc Boltanski, Laurent Thévenot, Francis Chateauraynaud, Daniel Cefaï transpuseram a filosofia das formas elementares da investigação de Dewey para uma sociologia das investigações (axiológicas ou ontológicas) dos atores (Ver Corrêa, 2014; De Castro e Corrêa, mimeo).

15 Segue a passagem no original em inglês: “Inquiry is the controlled or directed transformation of an indeterminate situation into one that is so determinate in its constituent distinctions and relations as to convert the elements of the original situation into a unified whole. The original indeterminate situation is not only ‘open’ to inquiry, but it is open in the sense that its constituents do not hang together. The determinate situation on the other hand, qua outcome of inquiry, is a closed and, as it were, finished situation or ‘universe’ of experience.”

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elementos constitutivos não se mantêm integrados, ou encontram-se em conflito uns com os outros, o que entrava o prosseguimento da conduta. O ponto de chegada é a organização de uma conduta ajustada: a investigação termina de fato quando uma situação integrada ou ordenada pode ser estabelecida, isto é, quando os elementos de confusão e de conflito puderam ser reduzidos ou eliminados de modo que uma orientação da ação possa ser definida. (2006, p. 42-43)

Nesse sentido mais amplo, a tese tem como hipótese básica o fato de que a UPP, desde sua chegada, não foi outra coisa senão um objeto constante de investigação dos atores por ela direta ou indiretamente afetados. Tal Investigação foi um processo reflexivo e experimental de reengajamento no “novo” ambiente da favela.

Em suma, tratou-se de uma busca, por parte dos atores que residiam na favela, por uma nova “ação que convém” (THÉVENOT, 1986). A UPP, seja como um objeto indeterminado no início, quando ainda sequer tinha um nome, seja depois como um objeto problemático, já que dotada de uma individualidade e concretude que impunha problemas e questões específicas aos moradores e traficantes da favela a partir de sua presença, nunca deixou de ser – e ao mesmo tempo constituir-se como – objeto da investigação dos atores.

Para tornar a apresentação do processo da implementação da UPP mais inteligível e ordenado, sigo a estrutura linear das fases da lógica da investigação de Dewey para organizar a tese. Deixo claro, contudo, que, na prática, penso muito mais em uma circularidade constante das fases na qual cada uma está contida em todas as outras. Ou seja, penso que a indeterminação, ainda que em intensidades variadas, está presente em todas as etapas do processo da UPP; assim como a problematização, os testes e as estabilizações. Por isso, na prática, entendo que ao invés de um sequenciamento teleológico que parte sempre da indeterminação e chega à estabilização, considero que a UPP, na verdade, é um problema contínuo, uma evolução permanente de estabilidade e instabilidades cujas investigações e ações dos atores estão lidando ao longo do tempo. Daí porque essa estrutura linear que apresento adiante de situação indeterminada, problemática, fase de testes e hipóteses e, enfim, uma solução estável, é meramente analítica e nos ajuda a pensar o fenômeno em uma escala mais geral.

INDETERMI

NAÇÃO PROBLEMATI

ZAÇÃO TESTES ESTABILI

ZAÇÃO

(17)

Apresentei, no fim da introdução, a forma como esse trabalho foi estruturado a partir da passagem dessas fases do processo de investigação. Escolhi seguir tal roteiro porque o objeto dessa tese foi menos a UPP em si, e mais a UPP enquanto problema, ou seja, enquanto um objeto que foi investigado por aqueles que a vivenciaram, digamos, “na pele”. Nesse sentido, a tese é o resultado de um acompanhamento da investigação dos próprios atores que ao mesmo tempo em que a experimentaram diretamente a constituíram e a definiram progressivamente. No entanto, fazer esse acompanhamento nada tem de óbvio, sobretudo se considerarmos que, no início da minha pesquisa, as pessoas sistematicamente evitavam ou se recusavam a falar sobre as UPPs. Mostro, portanto, os caminhos que segui ao longo da minha pesquisa e os desafios que o trabalho de campo me apresentou.

4. Caminhos e dilemas do campo

Desviar do caminho batido talvez não seja uma grande metodologia, mas cria a possibilidade de se apreciar alguns pontos de vista incomuns, que podem ser os mais reveladores (DARNTON, 2011, p.17).

Em outubro de 2009, quase um ano após o início da ocupação policial do Santa Marta, comecei um trabalho de campo no morro situado em Botafogo. Meu objetivo era tentar entender os impactos que a chegada da UPP tinha gerado na rotina, na sociabilidade local e na experiência de “vida sob cerco” (MACHADO DA SIVA e LEITE, 2008) vivenciada pelos moradores da favela. No entanto, não sabia exatamente como começar a pesquisa, pois não tinha um contato para me ajudar na

“entrada” no campo.

Nesse período no qual estava pensando na melhor forma para começar o trabalho de campo, por sorte, uma amiga me encaminhou um e-mail divulgando

INDETERMINAÇÃO

PROBLEMATIZAÇÃO

TESTES ESTABILIZAÇÃO

(18)

reuniões que estavam sendo organizadas quinzenalmente no grupo Eco

16

, uma importante instituição do Santa Marta

17

. Comecei, então, o trabalho de campo acompanhando essas reuniões. Mas, logo de início, fiquei um tanto surpresa ao notar que, embora esses encontros tivessem sido criados para debater as mudanças que estavam ocorrendo na favela, quase ninguém queria falar sobre a UPP, especialmente, com pesquisadores

18

.

As lideranças comunitárias presentes no encontro justificavam essa recusa em tematizar a UPP por considerarem errada a visão passada pela grande mídia de que depois da “pacificação” tudo mudou na favela. Eles ressaltavam que a UPP não foi o

“marco zero na vida na favela”, como a mídia queria mostrar naquele momento. De forma irônica, uma moradora me disse, por exemplo, que não aguentava mais pessoas

“deslumbradas” falando “olha só o favelado agora bebe água gelada porque agora geladeiras foram distribuídas pós-UPP! Agora todos acessam a internet de graça, todos têm a casa pintada, têm segurança”. Irritada, ela condenava as falas que apontavam “que os policiais estavam resgatando a cidadania da favela só porque no dia das crianças estavam distribuindo brinquedo e fazendo uma brincadeirazinha com a molecada”. Essa moradora, assim como muitos outros, repudiava o discurso de que todos os serviços da favela haviam chegado após a “pacificação

19

”. Para os moradores esse discurso era muito perigoso porque não levava em consideração os anos de luta, de resistência que os moradores do Santa Marta precisaram enfrentar para permanecer no morro e obter melhorias para a qualidade de vida na favela.

Ao perceber a desconfiança de muitos moradores e o desconforto em falar sobre as UPPs, concluí que seria importante fazer, inicialmente, mais observação do que entrevistas. Comecei, então, a intensificar minhas idas à favela e, depois de                                                                                                                

16 O Grupo Eco é uma organização que atua na favela desde 1976. “É uma entidade sem fins lucrativos de caráter educacional e cultural e destinada a promover e apoiar na Favela Santa Marta e,

eventualmente, fora dela, atividades e iniciativas que visem o desenvolvimento humano integral das pessoas e da comunidade, com atenção especial às crianças, adolescentes e jovens (...) Hoje é formado por aproximadamente 100 pessoas que se constituem no corpo de associados da entidade”. (Fonte:

http://www.grupoeco.org.br/html/santa_marta.html Acessado em 05/01/2011)

17 No terceiro capítulo descrevo detalhadamente uma dessas reuniões.

18 Uma liderança comunitária do Santa Marta me disse, logo em minha primeira ida a campo, que havia uma grande quantidade de pesquisadores que estava fazendo pesquisas no morro e os moradores já estavam cansados da falta de comprometimento deles, que chegavam na favela fazendo um monte de perguntas, querendo entrevistas e depois não voltavam para expor os resultados das pesquisas e dar algum retorno para a população do morro.

19 Segue uma outra fala da moradora: “Agora mudou? Que agora o quê?! (...) Não aguento mais ouvir falar que agora tudo mudou, vou abolir a palavra agora do meu dicionário”.

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alguns meses, resolvi procurar uma casa para morar no morro. No início de março de 2010 consegui enfim me mudar para a favela, intensificando assim o meu trabalho etnográfico. Primeiramente aluguei por um mês um quarto na casa de uma família de chilenos que moravam na favela e, depois, consegui alugar um quarto na casa de uma antiga moradora da favela, onde permaneci por quase um ano.

Ao longo do trabalho de campo acompanhei atividades muito variadas no Santa Marta como: reuniões promovidas pela associação de moradores e outras organizações associativas da favela; encontros promovidos pelos representantes do poder público e pela polícia; filmagens de novelas e gravações de filmes e reportagens; cultos religiosos; visita de turistas e pessoas famosas à favela; eventos culturais e festas; cursos e aulas diversas oferecidas aos moradores (por exemplo:

curso de turismo; de prevenção às drogas; aula de yoga); a inauguração e o funcionamento da Rádio Comunitária Santa Marta

20

, entre outros.

Na maior parte dessas atividades, assim como no cotidiano da favela, quase ninguém falava abertamente e de forma espontânea sobre as UPPs. E mesmo quando eu perguntava sobre o tema, tinha a sensação de que as pessoas preferiam mudar de assunto ou delicadamente apresentavam-me alguma desculpa para não falar sobre o tema. Isso apareceu de forma ainda mais enfática em uma das primeiras entrevistas que fiz no Santa Marta. Tal entrevista foi realizada com um morador de mais de 30 anos de idade com quem eu já havia conversado algumas vezes. No início da entrevista, tudo transcorria bem e ele até falava com bastante empolgação sobre a sua história de vida e algumas de suas percepções sobre a vida na favela. Ele chegou a comparar o Santa Marta com outras favelas, contando sobre uma namorada que morava no Morro da Providência, razão pela qual ele teria frequentado o tal morro por                                                                                                                

20 A partir de um convite da historiadora Natalia Urbina, que fazia parte da Rádio, passei a integrar a equipe do programa Noticiário Latino-Americano. A ideia do programa idealizado por Natalia – que é chilena e morava há alguns anos na favela – era estabelecer pontes entre a realidade vivenciada no Morro Santa Marta e outras experiências vividas em outros países da América Latina. Uma das partes do programa que mais me interessava era a que realizávamos ao vivo entrevistas com moradores de diferentes partes do morro tentando recuperar a “memória do morro” e ao mesmo tempo debater as mudanças que vinham ocorrendo, a partir dessas falas. Além de participar do Noticiário, também atuei como secretária da Rádio, atendendo telefonemas dos ouvintes, fazendo atas durante as reuniões internas, ajudando a organizar a documentação para a legalização da emissora, entre outras atividades burocráticas. Tal experiência foi muito importante para a minha pesquisa, pois conheci muitos moradores – e muitos também passaram a saber quem eu era por causa da Rádio – e pude ter uma convivência quase cotidiana com a maior parte das lideranças da favela que tinham programas na emissora ou participavam de forma atuante em programas de outras pessoas e, por isso, visitavam com frequência a sede da Rádio. Durante os oito meses que esteve funcionando, a Rádio acabou tornando-se um importante espaço de debate e de sociabilidade na favela. E, consequentemente, tornou-se para mim um espaço privilegiado de observação participante.

(20)

dois anos. No entanto, segundo ele, o Santa Marta era bem melhor que a Providência.

Aproveitei então a deixa da comparação dos morros para lhe perguntar se na época em que ele frequentava a Providência já tinha UPP no Santa Marta. Uma imediata mudança em seu semblante se impôs, o tom de voz também se alterou e o ritmo da conversa se perdeu. Toda empolgação foi abruptamente dissipada e, em um tom bastante enfático, o entrevistado respondeu: “sobre isso eu não falo, não gosto de falar sobre o tema”.

Confesso que levei um susto com a resposta tão seca e, quase instintivamente, perguntei por que ele não gostava de falar sobre a UPP. Ele respondeu enigmaticamente: “Porque o importante é que tem emprego, entendeu? Não gosto de falar, não”. Ainda insisti perguntando se ele não gostava do projeto e ele respondeu apenas de modo ríspido: “não gosto”. Como o desconforto que ele estava sentindo era nítido e ele não parecia fazer nenhuma questão de disfarçar, tentei mudar de tema e perguntar sobre os possíveis impactos da polícia de uma outra forma, mas não tive sucesso. Perguntei, então, se ele achava que agora tinha mais gente de fora frequentando a favela e ele respondeu que com a UPP ou sem a UPP vinha gente para o Santa Marta e que o essencial, agora, estavam nos projetos que estavam melhorando.

Tentei achar outro caminho para a entrevista, perguntar sobre outros assuntos, mas um clima de desconfiança já estava instaurado. O seu rosto demonstrava tensão e desconforto; o seu olhar já não mais se fixava em mim, mas percorria o entorno, mapeando quem estava por perto, quem poderia estar ouvindo o que falávamos durante a entrevista. Eu tentava prosseguir, tentando destensionar um pouco o clima, mas ele não parecia mais disposto a interagir como antes. Quando eu fazia uma pergunta ou apresentava um comentário, ele pedia apenas para eu falar mais baixo.

Apesar de abaixar o tom de voz, a reclamação permanecia e ele insistia que eu estava falando alto demais, expondo – agora de modo aberto – que não queria que outras pessoas ouvissem nossa conversa. Como achava que, de certa forma, a entrevista já estava “perdida”, antes de a conversa acabar resolvi perguntar a opinião dele sobre a relação dos moradores com os policiais que atuavam na favela. Foi, então, que ele repetiu insistentemente que não queria falar:

Olha, posso falar uma coisa para você? Nessas coisas eu não me meto. (...) Não falo por que... Vou falar o quê? Não tem nada o que falar. Vou falar o quê? (...) Se não tenho nada para falar? Por que motivo eu vou falar? Falar o quê? Não tenho motivo para falar. (...) Não tenho nada contra ninguém.

Vou falar o quê? Cada um com seu cada um. Agora, se as outras pessoas

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querem falar, que elas falem. Se elas acham que têm desejo de falar, que elas falem. Se elas acham que têm necessidade de falar, que elas falem.

Cada um toma conta de si. Eu tomo conta de mim. (Trecho de entrevista com um morador do Santa Marta)

A fala do morador deixava muito claro que ele resistia em tematizar a questão das UPPs e até mesmo a estabelecer qualquer tipo de explicitação sobre temas que fossem associados ao aparato policial recém-chegado. Da pior maneira possível, aprendi que muito frequentemente a palavra UPP, para algumas pessoas, podia mesmo soar como algo congênere a um palavrão.

Confesso que, inicialmente, atribuí o insucesso das minhas primeiras tentativas de abordar o tema exclusivamente aos “erros” que eu poderia ter cometido

21

. Com o passar do tempo, contudo, fui notando que o “problema” não parecia estar apenas na minha dificuldade de conduzir entrevistas sobre o tema. Pude perceber que muitos moradores evitavam falar sobre as UPP não apenas comigo – em situações de entrevistas formais ou mesmo conversas casuais –, mas também com outras pessoas e em situações mais informais. Aos poucos fui observando que os moradores evitavam falar abertamente tanto sobre a polícia como sobre o tráfico em inúmeras outras ocasiões. Tudo parecia depender de onde, quando, como e com quem estivessem, caso contrário a explicitação desse tema parecia ser um tabu.

Por isso, a questão: como tratar de um tema lidando com atores que se recusam a falar explicitamente sobre ele ou, quando falam, me tomam como inimiga, ou seja, como alguém que parece necessariamente comprar um discurso simplista e triunfalista das UPPs? É verdade que, naquele momento inicial do campo, eu não era ainda capaz de entender as razões disso. Depois, bem mais tarde, como expresso na conclusão da tese, consegui elaborar uma resposta para essa questão que, a princípio, parecia-me enigmática. A noção de campo minado, que desenvolvo ao longo desse trabalho, não deixa de ser uma resultante de um esforço reflexivo baseado em experiências vividas de frustração das minhas intenções etnográficas iniciais.

Diante do silêncio e da evitação, resolvi eu mesma evitar fazer perguntas, pelo menos, por um tempo. Resolvi questionar menos e me concentrar no esforço para                                                                                                                

21 Na época fiquei me questionando se eu não deveria ter esperado um pouco mais para realizar a entrevista, quando já tivesse estabelecido uma relação de maior proximidade e confiança com o entrevistado. Julgava que seria melhor não ter usado o gravador ou ter escolhido um local menos movimentado para realizar a conversa. Imaginava que talvez o morador não tivesse “travado” e tivesse ficado tão irritado se eu tivesse apresentado as perguntas de outra maneira, dando mais “voltas” e fazendo mais mediações para introduzir o tema das UPPs.

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entender por que as pessoas preferiam não falar sobre os temas que eu abordava.

Pouco a pouco fui educando minha atenção para ouvir as narrativas que ecoavam pelos becos, vielas e esquinas da favela. O tempo foi passando e dia após dia fui anotando os pequenos relatos cotidianos que ouvia. Inicialmente, para ser bem sincera eles não me revelavam muita coisa. Eles pareciam peças soltas de um quebra-cabeça cujo desenho final eu estava muito longe de imaginar qual seria.

Assim, com o passar do tempo, percebi que os rumores poderiam ser uma primeira forma de adentrar no universo nativo sem tantas resistências. Sua circulação impessoalizada (“ouvi dizer que...”; “estão dizendo por aí que...”), impregnada de um discurso indireto (“disseram-me que...”; “alguém disse que...”), facilitava e muito o acesso. E isso porque o acesso às narrativas que circulavam como rumor não dependia da entrada em um contexto de confiança, mas sim e tão somente da participação direta nos fluxos comunicativos do ambiente da favela. Estar ali, viver junto, participar de eventos corriqueiros bastava-me para acessá-los. Enquanto o convívio reiterado me permitia, pouco a pouco, conquistar a confiança das pessoas e “desarmá-las” da desconfiança a priori para comigo – no caso, uma estranha e recém-chegada à favela – para tratar do tema das UPPs, eu coletava alguns dos inúmeros rumores que circulavam pela favela.

Progressivamente, fui me dando conta de que essas informações impessoais que transitavam pela favela poderiam ser heuristicamente válidos para refletir acerca dos impactos gerados pela implementação da UPP por dois motivos. Primeiro, porque os rumores – que são pensados nessa tese como “notícias improvisadas”

(SHIBUTANI, 1966), como explicarei no capítulo 2 – foram senão o principal, decerto um dos mais importantes dispositivos de troca de informações disponíveis para lidar com a incerteza e a indeterminação. Essas narrativas indiretas tiveram um papel fundamental nesse processo de investigação, pois faziam circular casos e histórias ocorridas desde o início da ocupação policial que ajudavam os moradores a conhecer e mapear o novo ambiente da favela no contexto pós-“pacificação”.

Em segundo lugar, notei que os rumores eram interessantes porque serviam

como uma porta de entrada para entender esse processo de investigação empreendido

por múltiplos atores. Descobri que ao acompanhá-los podia me auxiliar no

mapeamento das preocupações dos moradores, que foram mudando com o passar das

semanas, meses e anos que a favela foi pacificada. Eles me permitiam acompanhar o

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