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Adornos corporais das Antilhas à Amazônia: uma proposta metodológica

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Adornos corporais das Antilhas à Amazônia: uma proposta metodológica Body ornaments from the Antilles to Amazonia: a

methodological proposal Ornamentos corporales desde las Antillas a la

Amazonia: una propuesta metodológica

Catarina Guzzo Falci,

1

Profa. Dr. Annelou Van Gijn

2

Profa. Dr. Corinne L. Hofman

3

RESUMO

Um debate recorrente na arqueologia do baixo Amazonas e do norte da América do Sul diz respeito à produção e troca de adornos corporais em matérias primas líticas, especialmente dos chamados muiraquitãs. Tais artefatos são frequentemente considerados como evidências de interações entre as comunidades indígenas que viveram em diferentes áreas da Amazônia e da região circum-caribenha.

Apesar do crescimento do número de estudos nos últimos anos fazendo uso de diversos métodos, muitas coleções permanecem por ser estudadas. O presente artigo faz uma revisão dos estudos acerca de adornos corporais nas duas regiões e propõe uma metodologia para o estudo de contas, pingentes e outros adornos, principalmente em material lítico e concha. Argumentamos que a traceologia pode aportar informações detalhadas acerca das sequências de produção, da duração e das modalidades de uso de adornos, ainda que as coleções disponíveis sejam compostas principalmente por peças já finalizadas ou em um estado avançado da cadeia operatória.

1 M.A. Doutoranda em Arqueologia, Faculdade de Arqueologia, Universidade de Leiden Endereço: Faculty of Archaeology, Leiden University. Einsteinweg 2, 2333 CC, Leiden (Países Baixos).

Contato: c.guzzo.falci@arch.leidenuniv.nl

2 Professora de Cultura Material Arqueológica e Estudos de Artefatos, Faculdade de Arqueologia, Universidade de Leiden

3 Diretora da Faculdade de Arqueologia e Professora de Arqueologia do Caribe, Faculdade de Arqueologia, Universidade de Leiden - Categoria do artigo: Pesquisa

(2)

Palavras-chave: Adornos corporais, muiraquitã, Amazônia, circum-Caribe, traceologia, cadeia operatória

ABSTRACT

A recurring debate in the archaeology of the lower Amazon and northern South America concerns the production and exchange of bodily ornaments made of lithic raw materials, especially of those called muiraquitãs. Such artefacts have been regarded as evidence of the exchanges between the indigenous communities that lived in different areas of Amazonia and the circum-Caribbean. Despite the growing number of studies using different methods, many collections are left unstudied. The present article reviews previous studies about bodily ornaments in both regions and proposes a method for the study of beads, pendants and other ornaments, especially of lithic and shell raw materials. We argue that microwear analysis can bring detailed information about production sequences, duration and modes of usage of ornaments, even if the collections available are mainly composed of finished artefacts or pieces in an advanced stage of the chaîne opératoire.

Keywords: Body ornaments, muiraquitã, Amazonia, circum-Caribbean, microwear analysis, chaîne opératoire

RESUMEN

Un debate recurrente en la arqueología de la baja Amazonia y del norte de la América del Sur concierne la producción e intercambio de ornamentos corporales de materias primas líticas, en especial de los denominados muiraquitãs. Estos artefactos son frecuentemente considerados como evidencias de interacciones entre las comunidades indígenas que vivieran en diferentes áreas de la Amazonia y la región circum-caribeña. A pesar del creciente número de estudios en los últimos años que utilizan diferentes métodos, muchas colecciones permanecen no estudiadas. El presente artículo hace una revisión de los estudios acerca de ornamentos corporales en las dos regiones e propone una metodología para el estudio de cuentas, colgantes y otros atavíos, principalmente en material lítico y concha. Argumentamos que la traceología puede aportar informaciones detalladas sobre las secuencias de producción, de la duración y modalidades de utilización de los ornamentos, mismo si las colecciones disponibles sean compostas en su mayoría de artefactos ya completos o en un estado avanzado de sus cadenas operativas.

Palabras-clave: Ornamentos corporales, muiraquitã, Amazonia, circum-Caribe,

traceología, cadena operativa

(3)

Adornos corporais das Antilhas à Amazônia: uma proposta metodológica 1. Introdução

A ornamentação corporal é comum entre grupos indígenas nas terras baixas da América do Sul. Adornos compostos (colares, cintos, braçadeiras, etc.) envolvem fibras de origem vegetal ou animal, às quais são adicionados adornos de concha, vidro, dente, sementes, lítico, plumária, entre outros materiais (Ribeiro, 1986; 1988). Tal variedade é vista não somente nas matérias primas, mas também nos tipos de adorno, iconografia, composições, e posição no corpo. Ao mesmo tempo, estudos de etnologia indígena já há algum tempo apontam a importância do corpo e dos elementos a este adicionados na construção da pessoa e nas mitologias ameríndias (Seeger, 1975;

Seeger et al. 1979; Turner, 1995). Mais recentemente, antropólogos tem demonstrado maior interesse nas formas como são usados e pensados entre as sociedades indígenas da região (Lagrou, 2009; 2012;

Miller, 2007; Van Velthem, 2010). Porém, quando voltamos nossa

atenção às comunidades indígenas do período pré-colonial, as fontes

de que dispomos para a compreensão das formas de ornamentação

corporal e seu papel social são, em geral, reduzidas. Dentre estas,

pode-se citar: 1) os artefatos interpretados como adornos recuperados

em contextos arqueológicos (por exemplo, contas, pingentes e

tembetás), 2) elementos representados em estatuetas cerâmicas, 3)

fontes etnohistóricas e, finalmente, 4) analogias etnográficas. Cada

um desses tipos de evidência possui limites no que se refere à sua

capacidade de proporcionar uma imagem holística da ornamentação

corporal anterior ao contato com os europeus. No presente artigo,

procuramos discutir a primeira dentre tais formas de evidência

disponíveis para os arqueólogos: os adornos recuperados em sítios

arqueológicos. Os limites que podem ser apontados a seu estudo

dizem respeito a características físicas de tais objetos, às formas como

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em geral foram coletados, à preservação diferencial entre materiais orgânicos e inorgânicos em contextos tropicais, e aos métodos de pesquisa disponíveis para os arqueólogos.

Tais questões são encontradas no estudo de artefatos deste tipo na arqueologia brasileira, mas também são percebidas na arqueologia do Caribe. Relatos etnohistóricos e as poucas peças compostas provenientes das Antilhas Maiores sugerem o uso de adornos feitos em plumária, sementes e algodão pelos grupos indígenas da região, usados não somente para a ornamentação corporal de humanos, mas também para os chamados “ídolos” de algodão (Ostapkowicz 2013;

Ostapkowicz e Newson 2012; Taylor et al. 1997). De modo similar às terras baixas da América do Sul, nenhum destes materiais tende a sobreviver no registro arqueológico da região, salvo em condições excepcionais. Por outro lado, adornos em matérias primas duras de origem animal, isso é, em conchas, ossos e dentes, são comumente encontrados nas Antilhas. Neste sentido, tais espécimes se aproximam mais da variabilidade de matérias primas encontrada nos adornos etnográficos. Por outro lado, semelhanças têm sido notadas entre a cultura material arqueológica do Caribe e do norte da América do Sul, em particular no que diz respeito a cerâmicas e adornos corporais.

Do ponto de vista da arqueologia caribenha, tais comparações são comuns, em especial a analogia etnográfica com comunidades indígenas do norte Amazônico e do Orenoco. Isso se relaciona à visão, já tradicional na disciplina, de que os grupos ceramistas que habitavam as Índias Ocidentais desde por volta de 200 a.C. teriam migrado para as ilhas a partir do baixo Orenoco (Rouse, 1992). Neste caso, a iconografia e as matérias primas líticas dos adornos corporais são usados como evidência de interações entre as duas regiões, em particular os adornos de pedra verde em formas batraquianas.

No presente artigo, em primeiro lugar, revisamos algumas destas hipóteses e os estudos conduzidos em ambas as regiões, ao mesmo tempo em que discutimos as problemáticas associadas a tais ideias.

Em seguida, propomos o uso da traceologia como método de

estudo para adornos corporais. Tal método vem sendo aplicado

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na arqueologia de diferentes regiões e períodos, tendo se tornado uma contribuição importante para a compreensão das biografias destes artefatos. Com base em estudos anteriores e em andamento (Falci, 2015; Falci et al., 2017), a aplicação da traceologia para o estudo de coleções circum-caribenhas em matérias primas líticas e conchas é discutido. Finalmente, argumentamos que tal abordagem, incorporando informações acerca das tecnologias de produção e do uso dos adornos, contribui para a criação de uma imagem mais completa do modo como tais artefatos integravam as sociedades indígenas destas regiões no passado.

2. Adornos corporais na Amazônia e no circum-Caribe

De acordo com o panorama histórico-cultural tradicional, os primeiros grupos ceramistas que ocuparam as Antilhas, associados à sub-série Cedrosam Saladoide, teriam migrado através da bacia do rio Orenoco em direção às ilhas (Rouse, 1992). Através dos séculos, tais grupos portadores da cerâmica Saladoide se diferenciariam e desenvolveriam a série Ostionoide, ocupando grande parte das Antilhas Maiores.

Estes seriam os ancestrais diretos dos cacicados Taíno, acerca dos quais possuímos fontes escritas pelos espanhóis que chegaram à região no final do século XV. Ainda que várias críticas e adendos tenham sido feitos a tal modelo (por exemplo, Chanlatte-Baik, 1984; Chanlatte-Baik e Narganes, 1980; Curet, 2005; Rodríguez Ramos, 2010), tal conexão entre as Antilhas e o norte da América do Sul ainda serve como base privilegiada para a interpretação da cultura material arqueológica. A etnologia indígena, aliada aos relatos etnohistóricos, foi responsável por contribuições importantes para a compreensão das populações que ocuparam as Antilhas no período pré-colonial, em particular acerca de sua cosmologia, organização social, estruturas dos assentamentos e variabilidade artefatual (e.g., Boomert, 2000; 2001a; 2001b; Petitjean Roget, 1997; Roe, 1982;

Siegel, 1997; 2010; Stevens-Arroyo, 1988).

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A cultura material com representações figurativas tem sido analisada com referência direta a temas recorrentes nas mitologias amazônicas, em particular o xamanismo e pares de oposição (Boomert, 1987;

2001a; 2001b; McGinnis, 1997; Roe, 1982; Siegel, 1997; 2010).

Os personagens míticos presentes nas narrativas Taíno descritas por Frei Ramón Pané na ilha de Espanhola (Arrom, 1975; Petitjean Roget, 1997; Siegel, 1997) são também fontes privilegiadas para a interpretação de pingentes, cerâmicas e grafismos rupestres com representações figurativas. Com relação aos pingentes, é comum que os animais representados ou que forneceram as matérias primas usadas no adorno integrem tais interpretações baseadas no estruturalismo e associadas ao dualismo entre os sexos. Deste modo, sapos e criaturas noturnas estariam relacionados ao universo feminino, enquanto o jaguar e o cachorro corresponderiam ao universo masculino (Boomert, 1987; Petitjean Roget, 1997; McGinnis, 1997; Roe, 1982). Outro animal representado nos pingentes caribenhos, o urubu-rei, estaria diretamente ligado a voos xamânicos (Boomert, 2001a). Representações antropomorfas seriam posições cerimoniais quando masculinas e associadas à fertilidade, quando femininas (McGinnis, 1997).

Os sapos são recorrentes nas mitologias ameríndias e seu motivo é encontrado na cultura material pré-colonial nas Antilhas e norte da América do Sul (Boomert, 1987; Wassén, 1934). Dentre estes, encontram-se os muiraquitãs de pedra verde provenientes de diferentes áreas da bacia amazônica (Barata, 1954; Boomert, 1987; Costa et al. 2002a). Embora tradicionalmente considerados como feitos de

“jade”, tais pingentes com formas batraquianas foram produzidos

a partir de uma ampla gama de matéria primas líticas. No baixo

amazonas, considerado o principal centro de produção (Boomert,

1987; Moraes et al., 2014), quartzo, tremolita, nefrita, jadeíta,

varescita e hematita teriam sido utilizados, assim como, em alguns

casos, a argila (Costa et al. 2002b; Meirelles e Costa, 2012; Moraes et

al., 2014). O baixo amazonas seria um centro de produção e também

de difusão de tais elementos de adorno. Tal ideia se baseia em dados

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etnohistóricos, amplamente levantados por A. Boomert (1987), e também nos instrumentos líticos e pré-formas coletados na região que seriam associados à cadeia operatória dos muiraquitãs e/ou de adornos similares (Barata, 1954; Moraes et al. 2014). O estudo de tais artefatos associados está sendo conduzido, incluindo experimentações (Moraes et al. 2014; M. Amaral Lima, com. pessoal 2016).

Ademais do baixo amazonas, outras regiões foram apontadas como possíveis centros locais de produção de muiraquitãs: o norte do Suriname (Boomert, 1987; Rostain, 2006; 2014), o centro-norte da Venezuela (Antczak e Antczak, 2006; 2008; Falci et al. 2017), e os sítios Saladoides/Huecoides nas Antilhas Menores (Chanlatte- Baik, 1984; Cody, 1991; Narganes Storde, 1995; 1999; Watters, 1997). Na costa do Suriname, os grupos associados ao complexo Kwatta, ocupando a região de aproximadamente 790 a 1220 d.C., eram especializados na produção de pingentes em formas batráquias, sendo responsáveis por sua troca com as regiões vizinhas e também com grupos mais ao leste, na ilha de Marajó (Migeon, 2008; Rostain, 2006; Rostain e Versteeg, 2003; Versteeg, 2003). Como já notado por Rostain (2006), as formas representadas e as matérias primas utilizadas são mais amplas do que no baixo Amazonas. As matérias primas incluem riólito, quartzo, nefrita, tremolita, concha e resina.

Além dos batráquios, outros animais também são representados, como aves, peixes, um jacaré e tartarugas, além de formas não identificadas.

De modo similar, no centro-norte da Venezuela, vários tipos de adornos corporais foram coletados ou escavados de sítios localizados às margens do lago de Valencia datados entre 900 e 1500 d.C.. Adornos corporais zoomorfos feitos em rochas verdes foram recuperados, mas principalmente em formas reminiscentes a tartarugas (Antczak e Antczak, 2006). Entretanto, mais que um centro especializado na produção de muiraquitãs, a abundante presença de adornos variados em conchas de origem marinha sugere que esses eram os produtos principais produzidos na bacia do Lago Valencia e dali, circulados pela região (Antczak e Antczak, 2006; 2008; Falci, 2015;

Falci et al. 2017; Vargas Arenas et al. 1997). Paralelos foram feitos

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entre a abundante produção de contas em conchas marinhas na região no período pré-colonial com a circulação de quirípas (cordões de contas feitas em concha) ao longo rio Orenoco no período colonial, as quais eram utilizadas como moeda entre os europeus e os indígenas (Gassón, 2000). Estudos recentes sugerem que de fato as comunidades que habitavam a bacia do lago de Valencia mantinham contato com diferentes áreas, incluindo a costa e as ilhas oceânicas ao norte para a obtenção de moluscos para consumo e produção de artefatos, os Andes venezuelanos, para obtenção de pingentes de serpentinita, e com o sudoeste da Venezuela para obtenção de azeviche, também usado para adornos (Antczak e Antczak, 2006;

2008; Wagner e Schubert, 1972). Um estudo acerca das tecnologias de trabalho da concha foi conduzido por I. Vargas Arenas (et al.

1997), no qual o material da bacia do lago Valencia é comparado àquele do vale de Quíbor. O estudo está centrado nas tipologias de artefatos, mas inclui informações abundantes acerca das técnicas e gestos utilizados na produção de adornos. Mais recentemente, um estudo microscópico com enfoque em tecnologia e uso dos adornos corporais foi conduzido pelas autoras em coleções da bacia do lago Valencia (Falci, 2015; Falci et al. 2017). Embora os pingentes não tenham sempre sido recuperados em escavações controladas, de acordo com Rostain (2006, 158-60), nas três regiões eles estão associados à série Arauquinoide, com datações entre 500 e 1600 d.C. Não somente a distribuição desigual de artefatos nas regiões de estudo é considerada na formulação de hipóteses acerca da circulação dos pingentes, mas principalmente a distribuição diferencial de suas matérias primas e o alto nível de habilidade técnica que teria sido necessário para sua produção.

O último centro de produção de muiraquitãs se encontra na Antilhas.

Neste caso, trata-se de nove sítios associados às séries Saladoide e/ou Huecoide encontrados em diferentes ilhas, desde Granada no sul a Porto Rico, já nas Antilhas Maiores (Tabela 1). Datados aproximadamente entre 200 a.C. e 400 d.C. (Hofman et al. 2007;

2014), estes sítios incluem uma profusão de adornos em matérias

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primas diversas e em diferentes estágios de manufatura. Além de contas

de vários tipos, pingentes zoomorfos são abundantes, representando

especialmente sapos, mas excepcionalmente também o urubu-rei. No

caso das representações de sapos, diferentes estilos estão presentes,

em particular os chamados sapos segmentados e os muiraquitãs

(Cody, 1991a). Enquanto os primeiros tem uma secção retangular

ou plano-convexa (Figura 1, a), sendo bastante simples e somente

reminiscentes de sapos, os segundos são maiores e mais naturalistas,

com um aspecto mais tridimensional (Figura 1, b). Ademais, estes

tem as duas perfurações típicas dos muiraquitãs, conforme F. Barata

(1954), enquanto aqueles possuem diferentes tipos de perfuração,

dependendo de cada espécime. Em muitos casos, as matérias primas

dos adornos são exóticas às ilhas, como se supõe para a turquesa e

a nefrita, ou provém de uma das ilhas que distribui para as demais,

como a cornalina e, possivelmente, a ametista.

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Sítios R egião Tradição/série Pesquisa Principais r efer ências

PortoBaixos Tapajós, Trombetas e NhamundáInciso-Ponteada Identificação de matérias primas Experimentos Barata, 1954 Costa et al. 2002a; 2002b Costa e M

eirelles, 2012 Moraes et al. 2014 Kwatta-TingiholoCosta do SurinameArauquinoideDescrição do material Identificação das matérias primas

Boomert, 1987

Rostain, 2006 Versteeg, 2003 Versteeg e R

ostain, 2003 Vários sítiosBacia do Lago de Valencia (centro-norte da Venezuela)ValencioideDescrição do material

Análise tecnológica Análise traceológica Antczak e Antczak, 2006; 2008 Falci, 2015 Falci et al. 2017 Vargas Ar

enas et al. 1997 Punta Candelero e Tecla Porto Rico (Antilhas Maiores)SaladoideDescrição do materialRodríguez, 1991a; 1991b La Hueca/SorcéVieques (Antilhas Maiores)Huecoide/SaladoideDescrição do materialChanlatte-Baik, 1984 Chanlatte-Baik e Narganes, 1980 Narganes Storde 1995; 1999 ProsperitySt. Croix (Ilhas Virgens)Huecoide/SaladoideDescrição do material

Identificação das matérias primas Análise traceológica (em andamento)

Faber Morse, 1989

Falci, estudo em andamento Vescelius e R

obinson, 1979 Royall’s e Elliot’sAntigua (Antilhas Menores)Saladoide

Identificação das matérias primas Análise tipológica Experimentos com per

furação

De Mille et al. 2008 Murphy et al. 2000 Turney, 2001 Hope EstateSão Martinho (Antilhas Menores)SaladoideAnálise tecnológicaHaviser, 1999 TrantsMontserrat (Antilhas Menores)Saladoide

Análise tipológica Análise tecnológica

Bartone e Crock, 1991 Crock e Bartone, 1998 Watters e Scaglion, 1994 PearlsGranada (Antilhas Menores)Saladoide

Identificação das matérias primas Análise traceológica (em andamento)

Boomert, 2007 Cody, 1991a; 1991b Falci, estudo em andamento

Tabela 1: S ítios de pr odução de ador nos corporais e muiraquitãs

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Figura 1: Pingentes batráquios do sítio Pearls em Granada, Antilhas Menores.

a) figura de sapo segmentado em jadeíta; b) muiraquitã em nefrita.

As redes de interação e circulação de tais recursos líticos entre as diferentes ilhas e os continentes ao seu redor tem sido amplamente estudados recentemente (Hofman et al. 2007; 2014; Knippenberg 2007; Mol 2014; Watters 1997), embora muitas perguntas permaneçam. Enquanto uma ampla gama de materiais foi usada na produção dos sapos segmentados, para os pingentes em estilo muiraquitã, parecem predominar nefrita e jadeíta. A origem antilhana ou continental de ambas as matérias primas ainda é ponto de debate e de pesquisas em andamento (García-Casco et al. 2013; Harlow et al.

2006; Rodríguez Ramos, 2010; 2013; G.R. Davies, com. pessoal). O

uso de conchas, especialmente marinhas, para a produção de adornos

também é notável, envolvendo contas com formas geométricas e

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pingentes automorfos e zoomorfos (Murphy et al. 2000; Turney, 2001). Estudos recentes de zooarqueologia e com isótopos apontam que não somente materiais líticos atravessaram longas distâncias, mas também pingentes feitos de bivalves de água doce e dentes de mamíferos, ambos provavelmente provindos dos continentes (Serrand e Cummings, 2014; Laffoon et al. 2014). Em suma, redes extensivas de circulação de artefatos e matérias primas, conectando diferentes ilhas e os continentes, têm sido notadas nos diferentes períodos de ocupação das Antilhas: não somente durante a Idade Cerâmica Antiga, como também no período precedente, Arcaico, e na Idade Cerâmica Tardia (Curet e Hauser, 2011; Hofman et al.

2006; 2007; 2008; 2010; 2014; Hofman e Hoogland, 2011; Mol, 2007; 2014; Rodríguez Ramos, 2010).

Apesar de sua importância central em discussões acerca de interações e trocas de longa distância, há um limite claro no conhecimento gerado acerca dos adornos corporais em si. No Caribe, a maior parte dos estudos tem se focado nas matérias primas de que os adornos são feitos ou nos estilos e iconografias dos adornos já finalizados. Pouco se sabe acerca do que se sucedeu entres os dois extremos das biografias destes artefatos. Em somente um caso, estudos tecnológicos foram conduzidos em uma coleção, neste caso as pré-formas e produtos de debitagem associados à produção de contas em matérias primas líticas duras, especialmente cornalina, no sítio de Trants (Bartone e Crock, 1991; Crock e Bartone, 1998). No norte das terras baixas da América do Sul, embora os adornos figurem em discussões acerca de contatos pan-amazônicos, poucos estudos tecnológicos vêm sendo conduzidos.

De fato, outros fatores limitantes associados a tais coleções não podem ser ignorados, já que estão ligados à preferência por estudos tipológicos e de identificação de matérias primas. Em primeiro lugar, muitos adornos pertencem a coleções privadas ou museológicas antigas, o que impõe um limite nas informações que podem ser obtidas acerca de sua proveniência. Segundo, em geral sua interpretação e associação

“cultural” dependem exclusivamente de associações tipológicas e

cronologias relativas, já que datações absolutas raramente podem

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ser feitas. Finalmente, é comum que, quando encontrados em sítios arqueológicos em investigações modernas, os adornos não estejam associados a contextos de produção ou de deposição intencional, mas sejam peças isoladas. Neste caso, devido ao estado avançado de modificação de tais peças e seu tamanho diminuto, a reconstrução de suas sequências de produção é dificultada.

3. Desenvolvendo uma metodologia de estudo

Nas próximas páginas, propomos a traceologia como metodologia específica para o estudo de adornos corporais, de modo a gerar maior compreensão acerca de como as populações indígenas do passado se relacionavam com os adornos corporais. Métodos analíticos variados têm sido usados para o estudo de adornos corporais arqueológicos em diferentes partes do mundo. Em face às problemáticas específicas a tais coleções no norte Amazônico e no Caribe, discutimos nesta sessão do presente artigo os conceitos e instrumentos de análise relevantes para a sua melhor compreensão: a cadeia operatória, as biografias dos artefatos e a traceologia.

3.1. Cadeia operatória e as biografias dos artefatos

A cadeia operatória foi desenvolvida como um instrumento de análise tecnológica, o qual permite um estudo focado nos processos técnicos e não somente nos artefatos já finalizados e suas tipologias (Balfet, 1991; Cresswell, 1983; Leroi-Gourhan, 1993). Deste modo, a cadeia operatória pretende englobar os diferentes estágios pelos quais um artefato passa, desde a aquisição da matéria prima, passando pelas diferentes etapas de produção e uso, até seu abandono (Inizan et al. 1999; Karlin et al. 1991; Pelegrin, 1991; Sellet, 1993). Tal abordagem possibilita-nos perceber as escolhas e estratégias usadas pelo produtor de um dado artefato, ao mesmo tempo em que as dificuldades e problemas técnicos com que se deparou (Bodu, 1999;

Cahen e Karlin, 1980; Karlin et al. 1991; Pelegrin, 1991). As cadeias

operatórias identificadas são evidência de modos de fazer específicos

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de uma cultura e da habilidade técnica do indivíduo em particular (Lemonnier, 1993; Pelegrin, 1991; Rodet e Duarte-Talim, 2013). Um dos principais aspectos desta abordagem é o fato de que as escolhas feitas não são guiadas somente pelas propriedades físicas das matérias primas utilizadas (Cresswell, 1983; Dobres, 2001; 2010; Lemonnier, 1993; Stout, 2002). Tais escolhas seriam o resultado de fatores de origens variadas, includindo políticas, sociais, culturais, individuais, mecânicas e ambientais (Dobres, 2001; 2010; Pfaffenberger, 1988;

Silva, 2002). Em termos de metodologia, o uso da cadeia operatória requer atenção a coleções inteiras de artefatos líticos, incluindo não somente os instrumentos, mas também produtos de debitagem.

Tais dados são organizados em um esquema técnico, isto é, uma cadeia operatória ideal que leva em conta os gestos, operações e sequências sucessivas envolvidas na produção de um artefato (Balfet, 1991; Karlin et al. 1991). A realização de experimentos tem um papel importante na compreensão das matérias primas utilizadas e das escolhas técnicas feitas (Inizan et al. 1999; Karlin et al. 1991;

Pelegrin, 2000a; Tixier, 1980).

O uso da cadeia operatória tem sido criticado por alguns arqueólogos

como uma imposição de uma trajetória linear e intencional a artefatos

que teriam sido submetidos a episódios cíclicos de uso, reuso e

reciclagem (Brysbaert, 2007; Joy, 2009). De fato, com base no artigo

de I. Kopytoff (1986), arqueólogos e antropólogos argumentam que

artefatos possuem complexas biografias culturais, dinâmicas e não

lineares (Joy, 2009), em especial com relação ao seu uso, cuidado e

troca. De fato, as biografias dos artefatos podem ser múltiplas e mesmo

parciais, envolvendo a co-criação de pessoas e objetos (Appadurai,

1986; Fontijn, 2013; Gosden e Marshall, 1999; Hoskins, 2006; Joy,

2009). Aí está incluída, por exemplo, a biografia do artefato após

sua excavação e entrada em uma instituição museológica. Cada uma

destas etapas envolve expectativas, valores e pré-concepções com

relação às formas como tais devem operar em um dado contexto

social. Diferente da cadeia operatória, a biografia cultural não é um

instrumento analítico e, por isso, não implica em uma metodologia

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de estudo específica. Uma abordagem arqueológica para o uso do conceito foi proposta baseada no uso da traceologia (Van Gijn 2010;

2012). Tal abordagem se dedica especialmente à produção e função dos artefatos, mas também a todas as etapas que resultaram em modificações observáveis em sua superfície. Neste caso, a biografia de um artefato é usada como uma metáfora que estrutura a narrativa que abrange as relações entre pessoas e objetos.

Comparando as duas abordagens discutidas aqui, pode-se dizer que a biográfica tem um alcance mais amplo, uma vez que se propõe a entender o contexto cultural mais amplo que um artefato integra e também as possíveis mudanças de status e significado ao longo de sua vida. A cadeia operatória, por outro lado, é caracterizada por um enfoque nas técnicas, gestos e decisões que são feitas durante a produção do artefato. Ela está mais conectada ao engajamento corporal do produtor. No presente artigo, ambos os conceitos são utilizados. A cadeia operatória oferece um instrumento para a observação detalhada e sistemática dos adornos corporais, para a compreensão das escolhas tecnológicas e preferências culturais.

Ao mesmo tempo, procuramos abranger os diferentes estágios das biografias dos adornos corporais, os quais teriam envolvido trocas de longa distância das matérias primas e peças finalizadas, além de sua recuperação e incorporação em coleções no presente. Esta escolha é importante porque todas estas etapas podem deixar (micro-) traços nas superfícies dos artefatos. Aqui dividimos os estudos em duas partes, uma com enfoque na produção e outra, no uso dos adornos.

Estes dois momentos são privilegiados, pois incorrem em maiores

modificações à superfície dos artefatos e, em geral, são o objetivo

do estudo dos arqueólogos. Modificações de outra natureza também

podem ser observadas da mesma forma e registradas.

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3.2. Estudo das técnicas de manufatura

Uma revisão da literatura acerca das técnicas de manufatura de adornos corporais permite perceber duas modalidades de estudo:

uma centrada na observação de adornos, instrumentos e produtos de debitagem com o olho nu e outra envolvendo uso de microscopia e diferentes níveis de magnificação. Cada método gera diferentes tipos de informações e tem seus limites específicos. Por outro lado, as perguntas de pesquisa são em geral similares e ambos baseiam suas interpretações em experimentos; além disso, podem ser usados de forma complementar. A abordagem baseada em observações com o olho nu também pode envolver o uso expedito de uma lupa binocular.

Este tipo de análise é mais comum em estudos de sítios de produção de adornos, nos quais peças em diferentes estados de produção e produtos de debitagem foram recuperados. Dentro do panorama da análise tecnológica, tais evidências permitem a organização dos artefatos de cada matéria prima em sequências hierárquicas, as quais podem ser utilizadas para a reconstrução de cadeias operatórias (por exemplo, Falci e Rodet, 2016; Goñi Quinteiro et al. 1999; Pelegrin, 2000b; Rodet et al. 2014a; 2014b; Roux, 2000; Roux e David, 2005;

Tsoraki, 2011; Wright et al. 2008). Neste sentido, ela se mostra similar aos estudos desenvolvidos no contexto da tecnologia lítica, quando se dedicam ao estudo detalhado das sequências e modalidades de lascamento evidenciadas nas superfícies dos artefatos. Por outro lado, também podem se dedicar mais a um estudo mais focado nas variações morfológicas nos artefatos, as quais proporcionam informações acerca dos diferentes estágios de produção presentes em dada coleção (Bar-Yosef Mayer, 1997; Barge, 1982; Mayo e Cooke, 2005; Suarez, 1981; Taborin, 1991; Vargas Arenas et al.

1997; Vidale, 1995). Em geral, os instrumentos provenientes do

mesmo contexto arqueológico são também levados em conta, uma

vez que podem ter integrado a atividade produtiva, como no caso

de percutores, polidores, alisadores, furadores, pesos para furadores

em arco, e bigornas (Carlson, 1995; Fabiano et al. 2001; Falci e

Rodet, 2016; Haviser, 1990; Mayo e Cooke, 2005; Miller, 1996;

(17)

Narganes Storde, 1999; Wright et al. 2008). Em tais pesquisas, a arqueologia experimental tem servido não só como forma de testar técnicas e sequências produtivas específicas, mas também para avaliar o tempo, esforço e habilidade necessários para a produção de adornos.

Tais contribuições têm alimentado debates acerca de especialização artesanal, a emergência da chamada “complexidade social” e o controle de atividades produtivas por elites (Baysal, 2013; Brumfiel e Earle, 1987; Costin, 1991; Miller, 1996; Wright et al. 2008). Esta abordagem que procura associar a produção de adornos corporais em larga escala ao controle de elites e à emergência de hierarquias sociais institucionalizadas é vista na região circum-caribenha nos trabalhos de I. Vargas Arenas (et al., 1997) e L. Carlson (1995).

A segunda abordagem mencionada envolve o uso de microscopia ótica e será o foco do presente artigo. Tradicionalmente dedicada ao estudo funcional de instrumentos líticos, a traceologia ganhou popularidade nos anos 70 integrando a arqueologia processualista.

Neste contexto, a análise microscópica era vista como fonte de evidências diretas e objetivas da função de artefatos pré-históricos que até então era baseada somente em tipologias (Mansur, 1986/1990, Keeley, 1974; Keeley e Newcomer, 1977; Plisson e Van Gijn, 1989).

Ao longo das décadas seguintes ficou cada vez mais claro que há limites

de inferência intrínsecos à análise e que ela tem um componente

interpretativo e, portanto, subjetivo (Newcomer et al. 1986; Van

Gijn, 1990; 2014a). Ainda assim tal método proporciona evidências

importantes que não podem ser obtidas de outras formas, como a

função dos artefatos, mas também como o processamento de materiais

perecíveis, a forma como diferentes tecnologias estavam conectadas

e uma visão mais completa dos sistemas tecnológicos do passado

(Hurcombe, 2008; Van Gijn, 2012; Van Gijn et al. 2008). No caso

do estudo de objetos de ornamentação corporal, a análise traceológica

proporciona uma forma de observar traços que não seriam visíveis

através das análises tradicionais. Isso porque, como mencionado

mais acima, o foco de estudo destes trabalhos não são os produtos

de debitagem, mas adornos já finalizados e, raramente, pré-formas.

(18)

Em tais artefatos, os traços dos diferentes estágios produtivos foram sucessivamente sobrepostos ou apagados, em especial através do alisamento e polimento. A análise traceológica proporciona uma forma de adquirir o máximo de informações tecnológicas dos adornos. Este também é o caso de contextos arqueológicos em que os adornos são peças isoladas, não associados a contextos de produção, ou quando seu contexto é desconhecido. Os traços observados na superfície dos artefatos podem, portanto, nos oferecer evidências dos sucessivos estágios das cadeias operatórias de produção de adornos, isso é, como e com que técnicas e instrumentos foram produzidos (Van Gijn, 2006; 2014b). Enquanto a análise tecnológica com olho nu proporciona informações abundantes acerca dos primeiros estágios de produção de um adorno, especialmente o lascamento, a traceologia proporciona maiores informações acerca dos estágios finais, como os tratamentos de superfície e a perfuração.

Ao longo das décadas, o termo traceologia veio a abranger o uso de diferentes instrumentos analíticos. Neste caso, nos centramos em três tipos: o microscópio estereoscópico (lupa binocular) e o microscópio digital portátil com entrada USB (Dino-Lite) para baixos aumentos e o microscópio metalográfico para magnificações superiores. Embora seja possível usar os microscópios de forma independente, as análises com os dois tipos de magnificação são complementares, já que mostram diferentes aspectos dos mesmos traços (Odell, 2001; Van Gijn, 1990;

2014a). Ademais, a combinação das duas magnificações permite uma

compreensão maior dos diferentes estágios da biografia de um artefato,

incluindo não somente sua produção e uso, mas também episódios

de reuso e reciclagem (Rots e Williamson, 2004). O microscópio

estereoscópico tem, em geral, aumentos de 7,5x até menos de 100x,

permitindo a observação de modificações na superfície dos adornos,

em termos de sua morfologia e dos padrões de distribuição de incisões,

estrias, facetas, micropolido e perfurações (Beldiman e Sztancs,

2006; Bonnardin, 2008; Falci et al. 2017; Taborin, 1993; Vidale,

1995). O microscópio digital Dino-Lite é utilizado em contextos

de campo ou estudos em museus, quando o estereoscópio não está

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disponível. Os baixos níveis de magnificação permitem uma visão holística da superfície do artefato e boa compreensão de como os diferentes traços se sobrepõem e se relacionam de forma sequencial.

Ele também permite a observação preliminar de modificações de origem tafonômica nos artefatos e a identificação de resíduos que podem ter origem pré-histórica. Devido à possível presença de resíduos, os artefatos devem ser brevemente observados com o microscópio estereoscópico antes de serem lavados de modo a não eliminar ou contaminar resíduos. Ademais, modificações modernas às superfícies dos artefatos como contato com metal e madeira podem criar novos traços em sua superfície. A aplicação de marcações com nanquim e base de unha ou o contato com lápis também superpõem traços e dificultam a análise traceológica.

Pesquisadores apontam que as informações proporcionadas pela lupa binocular são incompletas e que devem ser suplementadas pelo uso de aumentos maiores. Neste sentido, o estereoscópio serve como um primeiro estágio de pesquisa, ao qual se segue uma etapa de análise mais aprofundada com outro microscópio (Van Gijn 2014a). O microscópio metalográfico é utilizado, em geral, com magnificações que vão desde 50x até 500x na traceologia. A análise com este instrumento dedica-se à observação da micro-topografia da superfície dos artefatos, através da observação e caracterização de micropolidos, estrias, arredondamentos e micro-retiradas (Mansur 1986/1990; Keeley, 1974; Van Gijn, 1990). Através da observação de tais elementos, é possível identificar os materiais com que um artefato teve contato e o gesto utilizado. No caso particular dos adornos, a análise permite a identificação das matérias primas dos instrumentos utilizados em sua produção, como os perfuradores e alisadores (Falci et al. 2017; Groman-Yaroslavski e Bar-Yosef Mayer 2015; Lammers-Keijsers 2007; Van Gijn 2006; Van Gijn et al. 2008;

Verschoof 2011; Yerkes 1993). Tal identificação se dá através de uma analogia com traços produzidos durante experimentos controlados (Lammers-Keijsers 2005; Rots e Williamson 2004; Van Gijn 1990).

Neste caso, o enfoque dos experimentos é caracterizar os microtraços

(20)

formados como resultado do contato entre dois ou mais materiais específicos, de acordo com um gesto e duração particular (Bamforth 2010; Keeley 1974; Lammers-Keijsers 2005; Mathieu 2002; Van Gijn 1990). A análise com o microscópio metalográfico requer a limpeza do material, seja esta com água e sabão, álcool, ácidos ou tanque ultrassônico, uma vez que não somente o sedimento que adere às superfícies impede a visualização dos microtraços, mas também porque o contato constante com as mãos cria uma camada oleosa sobre o artefato, impossibilitando sua análise. No caso de resíduos presentes na superfície dos adornos, por exemplo, resinas, ocre e restos de fios preservados (Cristiani e Borić, 2012; Langley e O’Connor, 2015; Winnicka, 2016), estes devem ser examinados com o metalográfico antes da limpeza ou ser extraídos. Este microscópio proporciona maior detalhe para o estudo de resíduos em adornos, especialmente com o uso de um filtro polarizador.

3.3. Estudo dos traços de uso

O uso é uma dimensão importante da biografia de um objeto, a qual

só pode ser acessada de forma mais objetiva através da traceologia,

ainda que certo nível de subjetividade esteja sempre presente. Ainda

que de forma reduzida, a traceologia tem sido aplicada nas Antilhas

para o estudo da função de diferentes tipos de artefatos feitos em

concha, lítico, ossos e coral (por exemplo, Breukel, 2013; Kelly e

Van Gijn, 2008; Lammers-Keijsers, 2007; Lundberg, 1987; Van Gijn

et al. 2008; Walker, 1983). As pesquisas acerca do uso de adorno

corporais usando a traceologia são ainda mais reduzidas (Falci,

2015; Lammers-Keijsers, 2007). O estudo dos microtraços de uso

em contas e pingentes se dá pela observação das marcas deixadas

pela suspensão do artefato em um fio e por seu contato com outras

superfícies durante uso, como adornos adjacentes, roupas ou o

corpo humano e seus fluidos. Tais marcas podem ser caracterizadas

como deformações, arredondamentos e micropolidos adjacentes ao

lábio das perfurações e também nos bordos das peças. Tais atributos

permitem-nos inferir se um ornamento foi realmente usado como

(21)

tal, qual foi o modo de suspensão e se havia nós ou contas adjacentes.

Por este motivo, a adição moderna de fios de modo a criar colares com os adornos arqueológicos é nociva, pois pode também criar novos traços, especialmente quando tais fios são feitos de metal.

Embora alguns dos microtraços de uso possam ser vistos com o olho nu, o microscópio estereoscópico melhora sua compreensão, especialmente quando diferentes configurações de luz são usadas (direta ou oblíqua). Apesar de sua quase ausência nas Antilhas e no norte das terras baixas, esta abordagem com baixos aumentos tem sido amplamente utilizada para o estudo de adornos corporais, em especial daqueles feitos em concha, osso e dente (Beldiman e Sztancs 2006; Bonnardin 2008; Polloni 2008; Taborin 1993; Vanhaeren e D’Errico 2003). Isto está ligado ao fato de que tais materiais são relativamente macios e, portanto, desenvolvem traços de uso mais facilmente. Para coleções numerosas de adornos de um mesmo tipo, arqueólogos têm criado chaînes d’usure, ou cadeias progressivas de uso, nas quais podem incluir os artefatos estudados desde “não utilizado” até aqueles que se quebraram devido ao uso intenso (Bonnardin 2008; Sidéra e Giacobini 2002; Sidéra e Legrand 2006).

Tal abordagem é, porém, praticamente impossível de ser conduzida quando poucas peças estão presentes em uma coleção, já que não há material comparativo.

O uso do microscópio metalográfico permite a caracterização dos micropolidos, no que diz respeito aos materiais com que um adorno teria entrado em contato, como a pele, tecidos ou fios e outras contas (Breukel 2013; D’Errico 1993; Verschoof 2011; Wentink 2008).

Entretanto, o uso de aumentos maiores usando o microscópio

metalográfico para a compreensão do uso dos adornos é menos

comum. Isto está ligado ao fato de que a interpretação dos microtraços

de uso é limitada pela ausência e dificuldade de criar coleções

experimentais que sirvam de referência para as complexas biografias

dos adornos corporais. Diferentes autores tem procurado contornar

tal problema através de experimentos em que colares ou braceletes

são usados por um tempo específico (D’Errico et al. 1993; Mărgărit

(22)

2016; Verschoof 2011) ou em que colares são suspensos em máquinas, de modo a simular o uso e o contato com a pele e o suor (D’Errico et al. 1993; Vanhaeren et al. 2013). Outra avenida para discutir a questão do uso e suas possibilidades variadas é o estudo de adornos corporais etnográficos pelos mesmos métodos microscópicos, de modo a entender como certos traços podem se formar (Cristiani e Borić 2012; Langley e O’Connor 2015). Entretanto, estas abordagens, assim como a replicação de traços de produção, tem seus limites e não podem ser entendidas como réplicas perfeitas das atividades levadas a cabo no passado, especialmente quando conduzidas de forma clínica e artificial no presente.

4. A traceologia aplicada aos adornos corporais

O presente artigo começou discutindo a variabilidade em matérias primas presentes nos adornos corporais ameríndios das terras baixas, conhecidos através de fontes etnográficas e etnohistóricas. O registro arqueológico para a região circum-caribenha também mostra grande variedade de materiais, ainda que esta esteja sujeita às condições de preservação em solos tropicais. Líticos e conchas marinha são os materiais mais presentes dentre os adornos arqueológicos, mas outros materiais são também encontrados, como osso, coral, dente, madeira fossilizada, resina, cerâmica e mesmo alguns metais. As propriedades de cada um destes materiais são importantes para entender suas biografias; aí estão incluídas, por exemplo, sua cor, textura, durabilidade e aptidão para certas técnicas de manufatura.

Tais elementos podem nos ajudar a compreender as escolhas que resultaram na coleta, modificação, manipulação e uso de certos materiais e também na sua preservação no registro arqueológico.

Aqui nos centramos em duas categorias de matérias primas, a concha

e o lítico, para discutir as suas especificidades e problemáticas para

o estudo dos adornos, sua presença no registro arqueológico e,

finalmente, o modo como a traceologia pode contribuir para a

compreensão de suas biografias.

(23)

4.1. Adornos em concha

As conchas de moluscos eram usadas no Caribe pré-Colonial para a produção de diferentes tipos de artefatos, como adornos, anzóis e lâminas de machado (Lammers Keijsers, 2007; Van der Steen, 1992).

Entre os adornos, está inclusa uma grande variedade de formas, em particular zoomorfas e, em menor número, antropomorfas. A seleção deste material na região teria se dado por sua disponibilidade em diferentes ambientes, mas também por sua aptidão ao uso de diferentes técnicas, sua resistência, dureza média (de 3 a 4 na escala de Mohs) e estrutura regular (Clerc, 1974; Van der Steen, 1992).

Ademais, as várias espécies possuem formas, texturas e cores variadas, as quais provavelmente estavam também relacionadas à sua seleção.

As conchas dos moluscos possuem uma estrutura complexa laminar composta por diferentes camadas de carbonato de cálcio (CaCO³).

Este pode se apresentar de duas formas, aragonita e calcita, organizadas em diferentes microestruturas de acordo com a espécie em questão (Claassen, 1998; Debruyne, 2014; Szabó, 2008). Estudos acerca das diferentes microestruturas das conchas mostram que estas tem um impacto em sua aptidão para o trabalho, especialmente no que diz respeito à forma como as diferentes camadas se fraturam, mas também para o desenvolvimento de microtraços de uso e manufatura (Cuenca Solana et al. 2015; Szabó, 2008).

Na região circum-caribenha, artefatos feitos de concha-rainha

(Lobatus gigas) receberam maior atenção de arqueólogos, com foco

nas tipologias obtidas das diferentes partes deste grande gastrópode,

mas também com o auxílio da arqueologia experimental (Antczak,

1998; Breukel e Falci, no prelo; Carlson, 1995; Clerc, 1974; Dacal

Moure, 1997; Lammers-Keijsers, 2007; Linville, 2005; Lundberg,

1987; O’Day e Keegan, 2001; Serrand, 1999). À variedade de formas

e cores disponíveis nos diferentes gêneros de conchas, corresponde

uma variedade em adornos feitos com estas. Enquanto a maior

parte dos adornos feitos em conchas como Lobatus gigas, Spondylus

americanus e Chama sarda utilizam somente parte da concha como

suporte para a produção de um artefato (dito, portanto, xenomorfo),

(24)

outras conchas são usadas quase inteiras, com somente a adição de furos (automorfo). Este é o caso das conchas de Oliva sp., usadas para a produção de pequenos chocalhos que teriam sido amarrados em grupos nas pernas e braços para produzir sons, similar ao modo como coquinhos segmentados são usados por grupos ameríndios no presente (Ribeiro, 1989).

A identificação e replicação das técnicas de manufatura usadas para a produção de artefatos em concha é o foco de vários estudos na região circum-caribenha (por exemplo, Carlson, 1995; Clerc, 1974;

Lammers-Keijsers, 2007; Serrand, 1999; 2007; Turney, 2001; Van der Steen, 1992; Vargas Arenas et al. 1997) e, notavelmente, em outras regiões (Barge, 1982; D’Errico et al. 1993; 2005; Prous, 1986/1990;

Suarez, 1981; Taborin, 1991; 1993; Tátá et al. 2014; Velázquez- Castro, 2011; 2012). A arqueologia experimental tem um papel importante na diferenciação de furos de origem antrópica daqueles produzidos por predadores ou processos abrasivos de origem natural (Figura 2, a; Çakirlar, 2009; D’Errico et al. 1993; Francis, 1982).

Um estudo dos adornos figurativos em concha provenientes da bacia do Lago de Valencia na Venezuela demonstrou que uma sequência produtiva similar era seguida, mesmo em adornos morfologicamente distintos e feitos de espécies diferentes. Ademais, a comparação com a coleção experimental permitiu sugerir o uso de instrumentos em matérias primas orgânicas, como a madeira e a corda, para perfuração e/ou incisão dos artefatos (Falci, 2015; Falci et al. 2017).

Os adornos em concha tem também recebido atenção considerável de estudos centrados no seu uso e possíveis modos de suspensão (Bonnardin, 2008; Taborin, 1993; Vanhaeren e D’Errico, 2003;

Vanhaeren et al. 2013). De fato, a maior parte dos estudos de

traceologia de adornos está dedicada às peças feitas em conchas. Tal

linha de pesquisa se mostra frutífera uma vez que a concha é um

material macio, que desenvolve uso de forma relativamente rápida e

que pode ser reconhecida mesmo a olho nu (ver, por exemplo, o estudo

de M. Mărgărit [2016] acerca da durabilidade de adornos de concha,

usados como bracelete). Mesmo com baixos aumentos, modificações

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produzidas pelo uso podem ser reconhecidas, como arredondamento, formação de micropolido e deformação, os quais gradualmente eliminam os traços de manufatura (Figura 2, b). Em adornos que são pendurados de forma assimétrica, como pingentes, mas também botões, tais traços tendem a se desenvolver mais intensamente na direção de uso, isso é, na área de contato com o fio. Esta característica permite que muitas vezes seja possível reconstruir a forma como tal pingente foi acoplado a um adorno composto. Alguns adornos podem apresentar também setores aplainados e com micropolido, os quais podem resultar do contato com adornos adjacentes durante o uso ou com nós. Ao mesmo tempo, a observação com alta magnificação é necessária de modo a confirmar a natureza e distribuição do micropolido, para diferenciar os traços de uso daqueles podem ser tafonômicos ou mesmo uma camada oleosa resultante da manipulação dos artefatos no presente.

Figura 2: a) Detalhe da perfuração em conta de gastrópode marinho (Lobatus gigas), cercada por modificações causadas por predadores; b) micro-traços de uso em furo lenticular em adorno da mesma concha (direita). Ambas provenientes do sítio Playa Grande na República Dominicana.

4.2. Adornos em material lítico

Tradicionalmente, a traceologia se centrou no estudo funcional

de instrumentos em sílex, ou seja, em uma matéria prima dura,

homogênea e isotrópica. Por outro lado, muitos estudos acerca

de artefatos em lítico não lascado foram realizados nas últimas

(26)

décadas, apesar de dificuldades práticas como as grandes dimensões dos artefatos, que não podem ser analisados com microscópios tradicionais, a ausência de modificações tecnológicas óbvias, a granulometria de média a grossa e a heterogeneidade do material (Adams, 2002; 2014; Adams et al. 2009; Dubreuil e Savage, 2014;

Van Gijn e Houkes, 2006). Contas e pingentes de materiais líticos são em geral considerados como lítico não lascado, uma vez que as mesmas matérias primas e técnicas abrasivas similares são comumente usadas para sua produção (Adams, 2002; Tsoraki, 2011; Wright, 1992; Wright et al. 2008). Está aí implícita também a ideia de em ambas as tecnologias, o lascamento é somente periférico ou mesmo ausente. Entretanto, de acordo com a matéria prima usada para a produção de ornamentos e também com as escolhas tecnológicas de uma dada comunidade, o lascamento pode ter um papel importante na produção de adornos corporais, principalmente nos primeiros estágios da cadeia operatória (por exemplo, Falci e Rodet, 2016; Rodet et al. 2014a). Esta escolha pode estar relacionada ao uso de matérias primas duras e frágeis, nas quais o lascamento pode ser executado com maior controle e em que o alisamento é mais demorado. Neste sentido, devemos considerar que, ao mesmo tempo em que materiais líticos relativamente macios são comumente usados para adornos, como esteatita e calcita, materiais mais duros, como a cornalina, a jadeíta e o quartzo, também são comuns em alguns contextos, apesar de requererem esforço, tempo e habilidade consideráveis para sua produção (Groman-Yaroslavski e Bar-Yosef Mayer, 2015; Rapp, 2009; Roux, 2000; Sax et al. 2004).

Como discutido acima, durante a Idade Cerâmica Antiga nas Antilhas

matérias primas líticas variadas foram usadas para a elaboração de

contas e pingentes, em particular os pingentes zoomorfos. Tanto

matérias primas duras e frágeis quanto matérias primas tenazes, que

a princípio não respondem bem ao lascamento, foram usadas para a

produção de adornos. Os pingentes com formas de sapos segmentados

mencionados anteriormente são feitos, em geral, de materiais com

cores que variam entre o bege, o verde e o preto, mas que na verdade

se comportam de formas diferentes (por exemplo, serpentinita, jadeíta

(27)

e variedades de quartzo). A análise tecnológica detalhada ainda não foi conduzida em tais coleções; em todo caso, para os materiais em que as tecnologias abrasivas são predominantes, a ausência de produtos de debitagem faz com que a análise traceológica seja a única avenida possível para a compreensão de sua cadeia operatória. Apesar de seu avançado estágio de modificação, o uso de magnificações possibilita o reconhecimento de microtraços associados à operação de obtenção do suporte.

Em um estudo em andamento por uma das autoras (CGF) de uma

coleção proveniente do sítio Pearls em Granada, é possível identificar

duas técnicas diferentes de obtenção do suporte para pingentes: o

corte bidirecional com um instrumento de gume rígido e o corte

com um fio de origem vegetal. Enquanto aquele está presente em

matérias primas variadas, como a diorita, turquesa e jadeíta, este é

observado em rochas plutônicas e, possivelmente, em nefrita. Tais

traços podem ser identificados pela morfologia do corte resultante

e pelas estrias associadas a este (Falci, 2015; Sax e Ji, 2013). Ao

contrário de cortes feitos com gumes rígidos, o corte feito com um

cordão apresenta um sulco retilíneo em toda a sua extensão, apenas

com ondulação discreta, e uma base arredondada (Figura 3, a). As

estrias que podem ser vistas nas paredes são semicirculares. Ambas as

técnicas são também usadas na decoração, para a criação das incisões

e vazios que dão aos pingentes as características zoomorfas (Figura

3, b). O desgaste com cordão e abrasivos é dificilmente reconhecível

quando várias outras técnicas se sobrepuseram a seus traços durante a

cadeia operatória. Em todo caso, seu uso para a criação dos motivos

decorativos parece ser menos numeroso, embora esteja claramente

presente nos pingentes em forma de urubu-rei feitos em serpentinita

(Rodríguez Ramos 2010). Ademais, baseado em uma fonte do

século XVII (Goupy des Marets), S. Rostain (2006, 157) sugere que

tal técnica poderia ter sido usada na produção de suportes para os

muiraquitãs do complexo Kwatta. De fato, tais evidências permitem-

nos perceber variabilidade antes não vista no repertório tecnológico

destas populações.

(28)

Figura 3: O uso do corte em adornos do sítio de Pearls em Granada: corte com cordão e abrasivos em pré-forma em rocha plutônica (a) e com gume lítico em adorno de jadeíta (b).

Com relação às contas feitas em variedades macro- e microcristalinas de quartzo, em geral não é possível obter informações detalhadas acerca dos primeiros estágios de produção a partir de adornos finalizados, se estes foram produzidos através do lascamento. Por outro lado, a análise microscópica pode aportar informações abundantes acerca das últimas etapas da cadeia operatória, como o picoteamento e a forma como os sucessivos tratamentos de superfície se sobrepõem a este (Figura 4, a). É também possível notar casos em que a superfície de diferentes setores de um mesmo adorno foi tratada de forma diferenciada. Uma análise detalhada da micromorfologia dos furos, associada a observações experimentais, pode proporcionar informações acerca dos instrumentos utilizados durante a perfuração, como a sua realização com uma broca de material lítico duro e frágil (Figura 4, b).

Embora seja um tópico menos pesquisado, a observação de artefatos

arqueológicos tem mostrado que os microtraços de uso também se

desenvolvem em adornos feitos de materiais líticos de média e alta

dureza. Isto fica claro nos pingentes batráquios estudados, nos quais

o uso se forma também polindo, arredondando e criando micro-

estrias na área onde o fio se encontrava. Tanto no caso dos espécimes

amazônicos quanto dos caribenhos, o uso da traceologia pode oferecer

elementos importantes para a compreensão dos sistemas de suspensão

dos adornos, para além da tipologia e posicionamento dos furos.

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Figura 4: Tratamento de superfície (lustre) se sobrepondo ao picoteamento em conta de ametista de Pearls com aumento de 100x (a); micropolido deixado por uma broca de material lítico na borda do furo de uma conta de cornalina de Pearls, com aumento de 100x (b).

5. Considerações finais

O intuito do presente artigo era de trazer à tona adornos corporais enquanto artefatos arqueológicos. Tais artefatos têm recebido atenção no Caribe e no norte da América do Sul na construção de hipóteses acerca de interações de longa distância entre seus habitantes no período pré-colonial. Entretanto, em muitos dos contextos e coleções citados, estudos que corroborem tais hipóteses ou que a elas acrescentem mais detalhes ainda não foram conduzidos nestes artefatos. Argumentamos, portanto, que o estudo das biografias dos adornos é indispensável se procuramos entender tais artefatos em suas múltiplas dimensões: como atividade técnica, ornamentação corporal, bem exótico intercambiado e depositado em um sítio arqueológico. Uma abordagem biográfica nos permitirá qualificar tais hipóteses, na medida em que pode oferecer maior compreensão acerca das relações entre adornos provenientes de diferentes tradições arqueológicas, como os muiraquitãs. Não ignoramos aqui que muitos de tais artefatos provêm de coleções privadas ou museológicas, o que em geral limita uma análise contextual detalhada.

Como esperamos ter demonstrado, a análise traceológica fornece

informações abundantes acerca dos diferentes estágios das biografias

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de adornos corporais. Isto inclui o estado do material anterior à coleta, os diferentes estágios da cadeia operatória, o uso, reciclagem, modificações tafonômicas e possíveis modificações que ocorram durante a excavação ou curadoria. Um dos objetivos da traceologia é também tentar se aproximar dos repertórios de instrumentos e objetos que teriam integrado um sistema técnico; no caso particular discutido aqui, trata-se dos instrumentos em matérias primas orgânicas e os componentes dos adornos compostos que não sobreviveram no registro arqueológico. Isto não quer dizer que não haja limitações.

Nem todos os artefatos proporcionam o mesmo tipo ou quantidade de informações. Ademais, embora as magnificações ajudem na identificação do material, tanto para as matérias primas líticas quanto para as conchas, este não é o principal objetivo da traceologia. De modo a gerar uma visão mais completa das coleções estudadas com relação às matérias primas utilizadas e áreas de proveniência, colaborações estão sendo desenvolvidas junto ao grupo de pesquisa em geoquímica da Universidade Livre de Amsterdã (VU) no contexto do projeto ERC Synergy NEXUS1492. Tal dado pode ser comparado à distribuição dos adornos em diferentes estados técnicos nos sítios, de modo a contribuir para a compreensão dos padrões de intercâmbio de tais materiais.

Outras etapas ou eventos que compõem a biografia do objeto também devem ser contemplados, como seu cuidado, manuseio e deposição.

A traceologia pode informar acerca dos dois primeiros, se estes resultaram em modificações permanentes da superfície do material.

Com relação a sua deposição, é necessário que tais objetos tenham

sido recuperados em contexto, o qual é indispensável para uma

compreensão mais holística desses artefatos. Entretanto, nem sempre

isto é possível, uma vez que muitos dos adornos corporais em materiais

exóticos e/ou com morfologias zoomorfas integrem coleções antigas

ou privadas, tendo sido coletados com pouco ou nenhum controle

de sua proveniência e associações. Em todo caso, argumentamos aqui

que somente após o estudo de tais objetos e a reconstrução de suas

biografias, é que outras questões como os potenciais agentivos dos

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adornos corporais podem ser compreendidos. Embora o presente artigo tenha se centrado nos adornos enquanto categoria a ser estudada, não é nossa intenção argumentar que seu estudo prescinde de outros tipos de pesquisa. A combinação de diferentes métodos e abordagens e o estudo do seu contexto e dos materiais associados são imprescindíveis para uma melhor reconstrução dos contextos sociais de que tais objetos teriam participado.

6. Agradecimentos

Esta pesquisa recebeu financiamento do Prêmio NWO Spinoza, da Organização para Pesquisa Científica Neerlandesa, laureado à Profª. Dr. Corinne L. Hofman em 2014. Com relação ao acesso às coleções ilustradas, agradecemos a Neil Wilcox e a Adolfo López Belando. Finalmente, agradecemos aqui também ao Prof. Dr.

André Prous por seu convite para participação deste volume e ao Dr. Stéphen Rostain por suas sugestões.

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Referenties

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